Broadway Danny Rose
Triste prenuncio contra um artista generoso. Revisão de um filme melancólico de Woody Allen.
Por Luiz Joaquim | 13.02.2021 (sábado)
“Receber, perdoar, amar”. Essa era a filosofia de vida do falecido tio Sydney de Danny Rose (Woody Allen) e que o sobrinho assumiu para si. Danny é um mitológico produtor de artistas fracassados em Nova Iorque e motivo de um bate-papo entre comediantes num restaurante, que se divertem enquanto relembram as trapalhadas do generoso, altruísta e devotado produtor que colocava seus artistas acima de si próprio.
Mas, a história central de Broadway Danny Rose (EUA, 1984), apesar de divertida, não é feliz. BDR é um dos filmes favoritos de Woody Allen (conhecido por ser muito rígido com o próprio trabalho) e, talvez, olhando novamente para o filme, em 2021, essa antiga predileção de seu criador impressione por soar quase como uma antecipação, feita 37 anos antes, daquilo que o próprio Allen viria a viver com atores e atrizes, em início de carreira, que ele ajudou a torna-los “oscarizados” e, depois, lhe viraram as costas, maldizendo o cineasta.
Na versão Broadway Danny Rose, esses artistas equivalem a um ventríloquo gago, um casal que faz animais com balão de gás, um papagaio cantor, um xilofonista cego, um sapateador perneta, um malabarista maneta, a moça que toca música com copos e também o treinador de pinguins adestrados, que patinam no palco fantasiados de rabino.
Por mais patético que todos pareçam, nenhum deles é menosprezado por Danny. Pelo contrário, Danny sempre acredita genuinamente no talento e potencial sucesso deles e sacrifica-se por todos, como se fossem de sua própria família. Numa citação de um outro parente, Danny diz: “Sempre ouvi: ‘amigos, amigos, negócio à parte’. Mas o que posso fazer? Nesse ramo o negócio é pessoal”.
Na principal história lembrada sobre Danny o foco está em um de seus artistas, Lou Canova (Nick Apollo Forte), um decadente cantor italo-americano de músicas românticas no estilo Tony Bennett, que teve algum sucesso 30 anos antes e volta a chamar a atenção por conta de um surto de nostalgia nas casas de show nova-iorquinas.
O caso é ilustrado como um flashback narrado por Jack Rollins, o histórico produtor dos filmes de Allen, que também inspirou Allen a criar Danny. Rollins, também conhecido pelo seu altruísmo, foi traído por um de seus artistas (Harry Belafonte) como Danny foi traído por Lou Canova
Uma curiosidade: Além de homenagear aqui o seu produtor Rollins, Allen aproveitou para convidar alguns clássicos comediantes do passado, colocando-os nessa mesma roda de conversa. São lendas do humor de um tempo passado. Estão lá Corbet Monica, Jackie Gayle, Morty Gunty, Will Jordan, Howard Storm, Milton Berie.
Mas, de volta ao caso que envolve Danny e Lou Canova, o que temos é o desesperado produtor correndo para trazer (contra a sua vontade) Tina (Mia Farrow) para acompanhar uma importante apresentação do cantor naquela noite. Tina, a propósito, esta sempre de óculos escuros. Seus olhos nunca são vistos no filme, como um indício da dubiedade dessa figura.
Acontece que Tina, a temperamental amante de Lou, também se relacionou com mafiosos que confundem Danny como o novo amante da moça. Uma vingança entra em curso enquanto Tina e Danny fogem até Nova Iorque para salvar a própria pele e também o show de Lou.
Toda as perseguições e presepadas geradas pela fuga – com Danny e Tina correndo de uma família italiana digna de um elenco feliniano – servem para Allen elaborar sua refinada graça. Mas é a partir da traição de Lou que temos aquilo que fica do filme: a lealdade, além de uma ideia da culpa como algo que pode balizar a honra.
Num dos breves momentos de tranquilidade, conversando num restaurante, Tina pergunta a Danny se ele acredita em Deus: “Não. Mas eu sinto culpa por isso”. Na seca piada de Allen, ele explica magistralmente que a culpa é o Deus de Danny e que, de certa forma, está ali a guia de sua generosidade e, talvez, a razão do seu fracasso nos negócios.
A aposta de Allen – aposta clara – é no sucesso do humano. E a sequência final de Broadway Danny Rose, uma das mais melancólicas entre os filmes de Allen, apresenta uma modesta ceia do Dia de Ação de Graças, a eminentemente data celebrativa da família norte-americana. Aqui, ela acontece no minúsculo apartamento de Danny com os seus fracassados artistas.
Ainda que cercado pela alegria e carinho dos amigos falidos, Allen consegue imprimir uma melancolia cortante nessa sequência, que fica ainda mais seca na linda fotografia em P&B de Gordon Willis (também responsável por Manhattan).
Mas Allen, incrivelmente, ainda consegue concluir o filme com uma outra bela cena, correndo pelas ruas de sua querida Nova Iorque, sob a neve, para perdoar Tina. Seguindo assim a filosofia de vida de seu tio Sidney. É tristemente lindo.
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