Roterdã, IFFR (2021) – Amigos e Estranhos
Essa tamanha dificuldade de se expor.
Por Marcelo Ikeda | 06.02.2021 (sábado)
Uma situação semelhante a que já havíamos comentado em O cachorro que não se cala, de Ana Katz, também acontece em Amigos e estranhos, de James Vaughan, mas adquirindo outros desdobramentos. Mesmo selecionado para a competição do Tiger Award, o filme de Vaughan não está propriamente interessado na inovação de linguagem ou em impactar o espectador por seus recursos de estilo. Mas, assim como o filme de Katz, o filme observa, por meio de pequenos episódios esparsos, como um sentimento de crise se espraia nos modos de ser e no cotidiano de seus personagens de cerca de trinta anos.
No entanto, a sutileza do filme de Vaughan talvez seja ainda maior. Aparentemente, Amigos e estranhos é um filme de corte transparente, de muitos diálogos e situações prosaicas. O filme busca observar o cotidiano de personagens que, apesar de muito falantes e de interagirem com outras pessoas, vivem numa espécie de ensimesmamento. Por trás das convenções sociais, não deixam de viver numa bolha ou numa profunda solidão. Esse ensimesmamento é que impede que as interações sociais tenham de fato profundidade, sejam de fato inspiradoras. Assim, o filme aborda essa espécie de superfície tediosa que contamina os personagens, e que impede que eles se abram de fato para o outro, que consigam se expor e compartilhar seus problemas e angústias. Para esses personagens australianos brancos de classe média alta, tudo parece estar bem. No entanto, esse mal estar se expressa de forma sutil, pela dificuldade de viver a vida de forma intensa, para além das aparências e das convenções sociais. Por essa dificuldade de se abrir para o outro. De se expor. Como o título expressa, sejam amigos ou estranhos, os encontros acabam nunca gerando aquela fagulha, aquela potência desejada. Os encontros talvez não aconteçam de fato porque os personagens querem, a todo custo, preservar sua intimidade. Ao mesmo tempo, o filme lida com essas situações com certa leveza e um tom de humor.
Assim, uma estratégia curiosa do filme é que muitos encontros acontecem na rua mas em lugares fechados, refletindo esse ensimesmamento mesmo em lugares públicos, como, por exemplo, os diálogos dentro de um carro que trafega pela cidade ou num salão de cabelereiro. O maior exemplo é que quando Ray vai com sua namorada para um parque, mas, em vez de passearem e desfrutarem a paisagem, eles permanecem fechados dentro de uma barraca de camping.
Dessa forma, a transparência do estilo sóbrio de Vaughan reflete, na própria estrutura do filme, os dilemas de seus personagens. Esse controle de si, esse equilíbrio que no fundo esconde um desejo de arriscar, de fazer diferente. Mas, assim como seus personagens, Vaughan nunca abandona seu estilo controlado, sua posição conformada com o destino das coisas, com o seu destino ensimesmado. Assim como seus personagens, Vaughan é consciente de sua condição mas não tem forças para mudar, tem receio de se abrir para o mundo, não quer sair de sua zona de conforto.
Há um momento extremamente curioso que acontece quase na metade do filme, um dos raros momentos em que o filme escapa de seus contextos controlados. Enquanto Ray espera por seu amigo, resolve sair do carro e encontra um grande saco preto abandonado no canto de uma calçada. Lá dentro ele pega uma bola de tênis. Ray quica a bola no chão e a atira pela estreita rua de bairro, completamente vazia. Lembramos de um pequeno momento logo no início do filme, em que Ray brinca com uma garrafa de água, até que ela acaba escapando de suas mãos e cai no vão de um viaduto. A bola que quica na rua, a garrafa que escapa das mãos de Ray, talvez sejam os únicos momentos do filme que existe uma centelha de algo inesperado, que aqui, na falta de termo melhor, ouso chamar de liberdade.
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