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Festivais

Roterdã, IFFR (2021) – Madalena

Os vestígios das desaparecidas que permanecem em nós. Leia a análise de Marcelo Ikeda.

Por Marcelo Ikeda | 05.02.2021 (sexta-feira)

Assim como Carro rei, o outro filme brasileiro presente no Festival de Rotterdam 2021, Madalena, longa de estreia de Madiano Marcheti, também busca examinar, de forma nada convencional, as contradições das estruturas da sociedade brasileira que esmagam as diferenças. Apesar disso, as estratégias que os filmes utilizam para dar a ver essas tensões são quase abissalmente distintas. Enquanto Carro Rei dialoga com o cinema de gênero de Carpenter com elementos de cinema fantástico, Madalena opta por uma linguagem típica do cinema de fluxo contemporâneo, a partir de lacunas e esvaziamentos. Ou ainda, enquanto Carro Rei propõe um ambicioso desenho de inclinação sociológica mesmo a partir de uma alegoria de base fantástica sobre as origens do totalitarismo, Madalena prefere observar como os impactos desse mundo opressor se infiltram nos modos de ser do cotidiano.

Como já se expressa pelo título, o filme é sobre Madalena. Mas nunca vemos a protagonista, que permanece sempre no extracampo. Ou melhor dizendo, nem isso. A constante presença de Madalena se manifesta por meio de sua ausência. O filme investiga o impacto do desaparecimento de Madalena no cotidiano de pessoas próximas. A dramaturgia de Madalena é rarefeita: não sabemos exatamente quem é Madalena, o que faz, ou quais são as circunstâncias precisas de seu desaparecimento. O filme dispõe um conjunto de pistas, que não sabemos se são falsas ou não. Espraia-se uma certa atmosfera de mistério, mas não o suficiente para instalar o filme numa ambiência do cinema de gênero, pois não chegam a surgir pistas que nos levem a elucidar o destino da protagonista. (Não são pistas no fundo, nem peças – não há propriamente uma teleologia). O filme não é composto de peças que se encaixam ou não para dar sustentação ao drama principal. Estamos numa zona do desconhecido: o filme está permeado de lacunas que não são preenchidas pela narrativa.

No entanto, Madalena permanece lá. Madalena (o filme) é, portanto, sobre os vestígios de Madalena na vida, nos corpos, nos olhares, nos desejos e nas carências de três pessoas tão diferentes que cruzaram o seu caminho. Mesmo que aparentemente invisibilizado socialmente, o corpo de Madalena permanece lá, estirado sobre o campo de soja. Sua presença insiste em permanecer, ressoando seja no olhar culpado dos assassinos ou dos omissos, seja nas lembranças suaves das que insistem em se entregar ao afeto ainda assim.

Madalena é uma delicada investigação dos vestígios daqueles que foram, daquilo que insiste em permanecer mesmo que se tente aparentemente sufocar ou fazer esquecer. O desaparecimento de Madalena me faz lembrar dos corpos mutilados pela Ditadura Militar, que ainda permanecem presentes entre nós.

No entanto, o filme não procura oferecer uma leitura pedagógica da sociedade ou da história do Pais, mas apenas sugere como a violência se espraia nos nossos modos de ser. De todo modo, resta ao espectador permanecer como as emas nas folhagens, que levantam a cabeça (longa) percebendo que algo surge no horizonte, mas, insuladas em suas solidões no extenso campo verde, não conseguem agir para além do seu espanto, e não conseguem perceber o que persiste para além do seu campo de visão. Sentem, no entanto, que há algo que as afeta.

Seria possível desenvolver Madalena a partir da vitimização de uma personagem excluída por uma condição identitária ou ainda a partir desse esvaziamento narrativo lacunar. No entanto, o que é formidável no filme de Marcheti é como ele consegue impregnar o filme não simplesmente de um sentimento de vazio, mas de uma angústia, de um desejo de percurso, por uma procura que sempre se revela incompleta. Por exemplo, dentro do seu confortável carro, o filho do fazendeiro passeia à procura de um socorro externo que no fundo expressa suas angústias interiores, numa relação sugestiva e delicada que me lembra do também sul-matogrossense A outra margem (2015),  belo curta de Natália Teresa.

still de “Madalena”

Madalena é permeado por uma atmosfera delicada que preenche o filme dessa inquietude controlada dos personagens, de uma certa impotência em libertar-se de suas aparências. Mas o faz sem nunca adentrar propriamente numa chave propriamente psicológica. O mérito de Madalena reside em como o realizador aborda os modos de ser da sociedade patriarcal do Centro-Oeste do País, de uma cultura conservadora, associada economicamente ao agronegócio e culturalmente ao sertanejo, mas sempre de forma sutil, sem os lugares comuns das abordagens sociológicas ou psicológicas mais elementares.

Por isso, Madalena não é um filme multiplot. Poderíamos pensar que, à moda dos filmes de Iñárritu, ao final da terceira história descobriríamos como essas personagens se cruzam para solucionar o desaparecimento da protagonista. Mas definitivamente não é esse o caso aqui. Não se trata de resolver o mistério como parte do plot, mas sugerir que o mistério se infiltra nos modos de ser, naturalizando-o como o medo que se impõe aos afetos da vida.

Assim, é muito belo o terceiro ato do filme, não apenas por recusar o alinhamento da urdidura do plot, mas o de propor essa relação delicada entre o cinema e a vida, de uma forma menos esquemática. Ainda assim, a vida continua. Um colar mergulha nas águas do rio como um gesto de despedida, um gesto que me lembra como Dona Bastu, no maravilhoso Girimunho (2011), de Helvécio Marins e Clarissa Campolina, se despede do esposo falecido ofertando suas roupas ao mar. Como um rio, Madalena é feito de fluxos, de camadas que convivem, não sobrepostas, em que mergulhamos e saímos transformados, sem que percebamos muito bem por meio da razão sua misteriosa essência.

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