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Festivais

Roterdã, IFFR (2021) O Cachorro que Não se Cala

Por uma forma discreta de estar no mundo. Leia análise de Marcelo Ikeda

Por Marcelo Ikeda | 05.02.2021 (sexta-feira)

Quando assistimos a filmes nos festivais de cinema – e em especial em festivais internacionais de prestígio, como é o caso de Rotterdam – acabamos nutrindo a expectativa de assistir a grandes filmes que se impõem pela suntuosidade de seu estilo. Ou seja, filmes que nos impressionam pela originalidade como o diretor exibe o seu estilo, como uma marca ou um traço inconfundível de sua autoria. Os festivais de cinema muitas vezes se confundem com festivais de estilo, em que, na glamourosa passarela dos festivais, desfilam as principais grifes de autores que buscam impressionar o espectador exibindo as suas mais extravagantes marcas.

Desse modo, dois filmes, que por acaso assisti em seguida, me impressionaram justamente pelo oposto da tendência acima, ou seja, por recusar esse caminho de chamar a atenção para si por meio do espalhafato: o argentino O cachorro que não se cala, de Ana Katz, e o australiano Amigos e estranhos, de James Vaughan.

Vou começar pelo singelo filme de Ana Katz. O filme começa com um grupo de vizinhos preocupados com um contínuo grunhido de um cachorro de um dos moradores. Essa lamúria interminável parece ser um sintoma de depressão, já que o animal permanece solitário por muitos anos. Poderíamos pensar que o filme seria sobre a relação de um homem com seu cão, mas, à medida que o filme prossegue, percebemos que não se trata apenas disso: esse é apenas um ponto de partida para expressar um sentimento de angústia mais amplo. O filme apresenta alguns episódios esparsos na vida de um homem por volta dos seus trinta anos, em empregos temporários, que simplesmente busca tocar a vida adiante, sem grandes perspectivas. Muda de emprego e de casa; tenta conhecer alguém, ter um relacionamento. O filme de Ana Katz reflete, então, de forma delicada, a crise desse adulto sem grandes perspectivas.

Ele acompanha de bem perto o personagem, mas ele permanece quase sempre em silêncio, um tanto opaco, como se fosse uma espécie de cachorro calado que observa o desenrolar de sua própria vida. No entanto, o que é curioso no tom que Katz imprime ao filme é que há uma certa leveza: não se trata de um filme totalmente fechado por dentro, enclausurado numa angústia rigorosa. A leveza da estrutura do filme dialoga com o próprio gesto do personagem. Ele não fica trancado em casa, mas interage com pessoas e situações, mas ainda que persista uma grande solidão dentro de si. É a mesma coisa com a própria estrutura do filme: Katz faz um filme leve, em que a certa opacidade do personagem nunca é um mero refúgio ou redoma do mundo. Isso fica muito claro quando o filme, dialogando diretamente com os impactos da pandemia, mostra, em seu terço final, que as pessoas passam a conviver com espécies de máscaras que funcionam quase como pequenos capacetes transparentes, ligados a tubos de oxigênio. O protagonista observa as pessoas em suas redomas como um espelho desse ensimesmamento que reina em suas vidas e parece não se inserir na rígida observância desses protocolos de segurança.

cena de “O cachorro que não se cala”

A leveza de O cachorro que não se cala, como se os seres humanos ou os filmes pudessem aprender com os animais, portanto, não esconde sua profunda melancolia diante do rumo das coisas, sua proposta de promover um certo retrato das relações humanas no mundo contemporâneo, e sua aposta pela solidão como sintoma do rumo das coisas. No entanto, não é fatalista: o personagem busca viver e amar, busca prosseguir sua existência ainda assim.

Mas, como dizíamos, é notável a estratégia de Katz em manter o próprio filme com essa aparência leve e discreta, sem apontar necessariamente para si, assim como seu personagem. Seu personagem não se considera o centro do mundo, não quer promover revoluções, não quer convencer ou transformar ninguém, quer apenas sorver sua existência e tentar lidar com sua solidão buscando interagir com o mundo. A discrição do estilo de O cachorro é, portanto, uma aposta ética de Ana Katz para lidar com o excesso de competitividade do mundo contemporâneo, que invade os modos de ser não apenas dos funcionários das grandes empresas mas de todos nós, inclusive (ou talvez especialmente) os artistas. Para tanto, contribui muito a bela atuação, discreta e serena, de Daniel Katz, não apenas irmão mas parceiro habitual da diretora, com quem roteirizou um de seus filmes, Sueño Florianópolis, curiosamente um filme que explora a ainda tão mal compreendida relação entre brasileiros e argentinos.

O que me interessa em O cachorro… é sua serenidade diante do aparente vazio do mundo, sua aceitação zen de nosso perene sentimento de frustração. É como o filme compreende sua melancolia, mas ainda assim não desiste de tentar viver uma felicidade possível. Como combina os tons em preto-e-branco com um certo humor. Como há no filme uma certa ingenuidade como combate à competitividade e aceleração do mundo contemporâneo (algo que me interessa muitíssimo e também se revela pelo expressivo uso de desenhos com tom poético infantil inseridos ao longo do filme). Ou seja, como a sua forma discreta, recusando um estilo autocentrado que aponta para si, é uma forma ética de mostrar a possibilidade de outra forma de estar no mundo, para além da competitividade do capitalismo contemporâneo.

É belo e surpreendente que o Festival de Rotterdam se interesse por um filme tão discreto quanto esse, e que perceba e incentive sua contribuição no panorama do mundo em que vivemos.

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