Força do Mal
Conhece o cineasta Polonsky? Não, não está escrito errado. E há uma razão para você não conhecê-lo.
Por Luiz Joaquim | 28.03.2021 (domingo)
Em Força do mal (Force of Evil, EUA, 1948), a personagem de Beatrice Pearson chama-se Doris. É uma jovem ingênua e correta que acaba sendo detida durante uma batida policial em uma das dezenas de bancas de apostas ilegais que dominavam Nova Iorque no pós-guerra.
Solta sob fiança pelo advogado Joe Morse (John Garfield, em uma de suas melhores performances no cinema), a moça sabe que a batida policial, e sua consequente prisão, foi armada pelo próprio advogado.
É quando, numa carona que pega com Joe ao sair da delegacia, Doris desabafa dizendo algo como: “Agora tenho meu nome fichado e minha digital marcada para sempre. As pessoas nunca esquecerão e eu sempre me lembrarei”. No que escuta de Leo, em tom jocoso: “Tudo isso foi um engano. O que acha de ser um engano, senhorita?”. E a resposta, triste: “Não muito bem, Sr. Morse”.
Tal diálogo, escrito pelo roteirista e diretor nova-iorquino Abraham Polonsky (1910-1999) soa assustadoramente premonitório sobre o que ocorreria com a própria carreira do realizador.
Tendo sido filiado ao Partido Comunista, Polonsky chegou a colaborar na Resistência Francesa durante a 2ª Grande Guerra. Mas, de volta aos EUA, viria a ser vitimizado pelo Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara, quando um colega o delatou em 1951 em plena caça às bruxas contra os comunistas.
Negando-se a colaborar com o Comitê, informando nomes de outros comunistas do segmento, Polonsky sofreu na pele a inclusão de seu nome na lista negra do McCarthismo, ficando pelos próximos 17 anos impedido de trabalhar na indústria, ao menos com o seu nome verdadeiro, uma vez que conseguiu roteirizar e vender projetos por ‘testas-de-ferro’ – termo dado a pessoas que ‘emprestavam’ seu nome para artistas marcados na lista negra.
E aqui vale um parêntese, a sugestão ao leitor, para melhor entender esse contexto vendo o ótimo Testa-de-ferro por acaso (The Front, 1976), o único filme dramático interpretado por Woody Allen, sob a direção de Martin Ritt com roteiro de Walter Bernstein (ambos também vítimas do McCarthismo).
Mas, voltando a Polonsky, quase duas décadas após a dura vida na clandestinidade, ele pôde voltar a assinar seu próprio trabalho, dando ao mundo, em 1969, Willie Boy, filme estrelado por Robert Redford. Teve, finalmente, reconhecimento em vida, sendo, inclusive, aclamado pela associação de críticos de Nova Iorque.
Antes da velada condenação do Comitê, Polonsky assinou roteiros com o seu nome em pelo menos dois clássicos absolutos do cinema noir norte-americano: Corpo e alma (1947), dirigido por Robert Rossen, e Força do mal, no qual assina também a direção (e tendo aqui ninguém menos que Robert Aldrich – O que terá acontecido a Baby Jane? – como assistente de direção).
Escute Sydney Pollack comentando sobre a carreira de Polonsky e sobre a beleza de Força do mal no vídeo abaixo.
FORÇA DO MAL – Em Força do mal o protagonismo está com o bem-sucedido advogado Joe que tenta convencer o irmão mais velho e endividado, Leo (Thomas Gomez), a associar sua banca de apostas a do poderoso (e também mafioso) homem das apostas ilegais em Nova Iorque, Ben Tucker (Roy Roberts).
Joe é o advogado da organização ilegal de Tucker e sabe que o irmão Leo ficaria facilmente rico ao lado do mafioso. O “problema” são os escrúpulos do irmão mais velho, que sacrificou a própria vida para dar ao caçula Joe a educação que não teve após a morte de seus pais.
É aí que Joe parte para o jogo baixo, denunciado à polícia a banca de Leo para que, assim, o irmão mais velho não tenha alternativa a não ser associar-se, ainda que contra a vontade, a Tucker.
Nesse pacote, temos Doris, uma protegida de Leo em sua banca, a quem o generoso patrão deu guarida desde o início de sua adolescência e que, aos olhos do irmão caçula Joe, ela é uma bela mulher a ser conquistada.
O que faz Joe sentir-se atraído por Doris é exatamente o que ele e todos no seu universo não possuem: uma pureza e uma fé na generosidade e no coleguismo profissional, tal qual Doris aprendeu com o ex-patrão Leo.
Temos no irmão mais velho de Joe uma figura cujo relação com o trabalho é diametralmente oposta à do jovem advogado. Para Joe, o grande objetivo é fazer rapidamente o seu primeiro milhão de dólares, não interessa quem precise ele atropelar.
Força do mal é, no final das contas, a adaptação da bíblica história de Caim e Abel transposta para o universo da ganância capitalista e, logicamente, de suas consequências imprevistas, quando o bom senso já foi ao espaço há muito tempo em função da cobiça pelo poder.
Na fotografia em P&B, um deleite a parte comandado por George Barnes (Rebecca [1940]; Quando fala o coração). Entre as nuances do claro e escuro, Barnes abusa nas sombras, como todo bom noir, para reforçar a personalidade dúbia do protagonista Joe, dividido entre o mal da ganância e o bem do amor por Doris e pelo irmão Leo. Ou mesmo quando o vemos sozinho, na consequência de seu mundo egoísta, como uma figura minúscula e solitária perambulando em vastos cenários sem vivalma.
É triste.
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