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O lado B de Roberto Rossellini

Humberto Silva revisita e reflete o embate político e ideológico já nas iniciais obras do mestre italiano

Por Humberto Silva | 19.03.2021 (sexta-feira)

O nexo entre política e ideologia para alguns cineastas é complexo, atado a condicionantes que jamais esclarecem de modo definitivo posições tomadas, o que reforça o quanto compromissos com a criação não são insuspeitos. Este é o caso de Roberto Rossellini e sua trilogia fascista para uns – militar para outros: O navio hospital (1941), Um piloto retorna (1942) e Um homem com a cruz (1943), realizados, portanto, no período fascista, durante a guerra e sob os olhares de Vittorio Mussolini, filho do Dulce, que tinha enorme influência na produção cinematográfica do regime.

Ora, para muitos, sem meios termos ou justificativas de circunstâncias, esses três filmes são de propaganda fascista: Rossellini exalta em cada um deles, respectivamente, a marinha, a força aérea e o exército. E não só exalta, estas instituições militares colaboraram diretamente para que esses filmes fossem feitos. A realização deles se torna tão mais controversa porque, imediatamente após o fim da guerra, ele realizou sua trilogia antifascista, Roma, cidade aberta (1945), Paisà (1946) e Alemanha, ano zero (1948), que passou à história como o conjunto de imagens canônicas que rementem o espectador, o cinéfilo, o crítico ou o historiador ao neorrealismo italiano, um dos mais importantes e influentes movimentos da história do cinema. Vale dizer: no intervalo de menos de dois anos, Rossellini passou da propaganda à extrema direita fascista à realização de filmes com enorme ressonância nos muitos grupos de esquerda, que dominavam a cena cultural e política da Itália com a libertação. Por óbvio, essa mudança instiga as mais diversas polêmicas sobre as razões que o teriam levado a trabalhar com Vitório Mussolini e, tão logo a guerra decretou o fim do fascismo, seu cinema ser tomado como uma das mais fortes bandeiras antifascistas. O que determina cinematografias em cantos variados do mundo até recentemente: em Jia Zhang-Ke, o nome mais fulgurante do cinema chinês nas últimas décadas, encontramos marcos do neorrealismo e, por conseguinte, de Rossellini.

Muito se escreveu a respeito (dentro e fora da Itália, e não é o caso de fazer aqui um inventário bibliográfico da polêmica), que vai da acusação de oportunismo (ele frequentava o mesmo ambiente de Vittorio Mussolini, tanto quanto de outras personalidades influentes no Ventennio Fascista), de alguém, pois, que se serviu do regime conforme lhe convinha, até a tentativa de ver em sua postura distanciamento igualmente conveniente: ele jamais, ao contrário de diretores importantes da época como Alessandro Blasetti ou Aldo Vergano (fundadores da revista cinematógrafo, que circulou entre 1937 e 1941), manifestou publicamente simpatia pelo fascismo; portanto, não foi um militante entusiasmado pelo ideário fascista. O próprio Rossellini, indagado por François Truffaut e Éric Rohmer, em entrevista disponível na Cinemateca Roberto Rossellini, argumenta que não há um antes e um depois da guerra, pois uma mesma intenção o motivou a realizá-los: mostrar o homem e suas circunstâncias, no caso, a Segunda Guerra. A postura de Rossellini, de qualquer forma, é ambígua e gera enormes dificuldades quando se tem em vista seus eventuais propósitos de fundo; para realizá-los, usando uma expressão de Sartre, ele “pôs as mãos na merda”. E traz igualmente dificuldades porque sua obra neorrealista encobre o que ele fez antes. O navio hospital, Um piloto retorna e Um homem com a cruz são filmes quase esquecidos, hoje não são praticamente vistos e, até com certo constrangimento, são evitados. E há razões para isso.

Cena de “O Navio Hospital”

O navio hospital, cujo roteiro foi escrito por Francesco De Robertis, cineasta bastante identificado com o fascismo, contou com a presença de enfermeiras voluntárias, oficiais e as tripulações de um encouraçado e de um navio hospital; nenhum dos personagens do filme, no entanto, foi creditado, como indicado no letreiro de abertura (De Robertis, para completar, foi um Oficial da Marinha que dirigiu Uomini sul fondo, em 1941, que trata com heroísmo o resgate de marinheiros de um submarino afundado: uma película, pois, de exaltação militar). O navio hospital foi produzido pelo Centro de Cinema do Ministério da Marinha, e as operações de guerra no filme são imagens reais das batalhas de Punta Stilo, contra a marinha britânica, e Capo Teulada, igualmente contra a marinha britânica (a história não registra vencedores, mas o filme exibe vitória italiana com saudação ao Dulce). O uso de imagens em locações reais e atores não profissionais estarão entre as características estilísticas do neorrealismo. Paralelo à ação na frente de batalha, uma trama de apelo melodramático: um jovem marinheiro encontraria no porto em que o encouraçado ancoraria sua professora das primeiras lições, por quem ele tem grande afeição, mas de que não lembra mais as feições; o encouraçado, contudo, não pode ancorar em razão de um alerta de ataque; na batalha, o encouraçado é atingido e o jovem marinho, gravemente ferido, é transferido para o navio hospital; eles acabam se encontrando, justamente, no navio hospital, onde ela é uma das enfermeiras voluntárias. Eles se reconhecem por causa de duas correntinhas no pescoço que haviam trocado no passado. O navio hospital venceu a Copa do Partido Nacional Fascista no Festival de Veneza de 1942.

Em Um piloto retorna, assim como O navio hospital, o tom realista e documental das primeiras imagens cede ao melodrama, e ao contrário deste Rossellini trabalhou com atores profissionais: o protagonista, Massimo Girotti, é um dos galãs da época. Uma primeira informação importante: o roteiro foi escrito por Vittorio Mussolini, sob pseudônimo (Tito Silvio Mursino), que foi piloto da força aérea italiana. Nos créditos de abertura, são feitos agradecimento aos Ministérios da Aeronáutica, Guerra e Cultura e às autoridades civis e militares de Viterbo. No início, o filme exibe oficiais em seus alojamentos conversando sobre trivialidade do cotidiano e manobras militares. É então exibida uma sequência de imagens documentais de bombardeios que foram cedidas pela força aérea. O centro da narrativa é a missão na qual um tenente da força aérea vai bombardear uma região da Grécia, Tempele, num momento em que os italianos enfrentam uma contraofensiva grega; enquanto o ataque ocorre, a imprensa italiana acende o patriotismo em campo de batalha. Mas seu avião é abatido e ele acaba prisioneiro de guerra: a Grécia só viria a capitular com a entrada do exército alemão no teatro de guerra. No campo de prisioneiros, ele cuida de feridos de guerra e se apaixona por uma jovem grega filha de um médico italiano, voluntária no tratamento dos enfermos. Com o avanço das tropas alemãs e italianas, os gregos recuam em debandada. Com a confusão da debandada grega, durante um bombardeio o tenente consegue fazer uma fuga espetacular, roubando um avião britânico e, ao voltar para a Itália, se expôs ao risco de ser abatido pelos próprios italianos. Ele, no entanto, conseguiu pousar e foi recebido como herói. O tenente, preso pelos gregos que combatem o fascismo, foi exibido como vítima, ao mesmo tempo em que se atenua seu efetivo papel na aeronáutica como piloto de guerra: bombardear e destruir sem piedade o inimigo.

Em locação de “Roma, Cidade Aberta”

O terceiro filme da trilogia fascista é Um homem com a cruz e nele se nota uma fase de transição, que se consumará em Roma, cidade aberta: o personagem central, um capelão militar que leva a palavra de Deus e também é médico, está literalmente no fogo cruzado entre as tropas russas e italianas. Ao contrário dos filmes anteriores, neste não há espaço para melodrama. Tropas italianas estão na frente russa no verão de 1942, momento em que o Eixo perde batalhas importantes (Stalingrado, Leningrado, Kursk) e tem início a ofensiva vitoriosa russa. Não há, igualmente, exaltação do Dulce nem qualquer manifestação de patriotismo. O capelão não pôde acompanhar a tropa e ficou cuidado de um soldado italiano ferido. Sozinho, foi feito prisioneiro pelos russos. É, então, recolhido a uma habitação em ruínas, que sofrerá um violento ataque do exército italiano. Os russos resistem a uma primeira ofensiva, mas a habitação é tomada e a situação se inverte: eles passam a ser prisioneiros dos italianos. Enquanto a batalha continua intensa em volta da habitação, um russo gravemente ferido na cabeça busca amparo nela. Ele foi acolhido pelo capelão, que trata de seus ferimentos. Quando o cerco final das tropas italianas se consuma, o capelão sai da casa em chamas e é alvejado no fogo cruzado. Antes de morrer, contudo, ele tranquiliza o soldado russo que estava com ferimento na cabeça, e que também estava à beira da morte, e pede para que ambos juntos rezem o Pai Nosso. O filme termina com um close-up na imagem da cruz na roupa do capelão. Nessa imagem final, a notória preocupação de Rossellini em mostrar que antes de russo o soldado é um filho de Deus, que em sua infinita bondade perdoa suas fraquezas.

Rossellini não manifestou publicamente simpatia pelo fascismo; mas tampouco, ao contrário de Luchino Visconti, se filiou ao Partido Comunista Italiano (PCI), de forte influência no meio cultural durante o pós-guerra, ou mesmo aderiu explicitamente a ideologias de esquerda no amplo espetro político italiano. Sob esse aspecto, ele se manteve tão distante da influência do PCI quanto do Partido Fascista. Assim sendo, convenhamos, a identificação com a ideologia comunista, nos anos do centrismo italiano (coalizão política que chegou ao poder na Itália em 1948 apoiada pela Igreja Católica e pelos Estados Unidos e que reunia liberais, direitistas e anticomunistas), lhe teria trazido problemas que ele não teve nos anos fascistas (Sedução da carne, de 1954, dirigido por Visconti, foi mutilado pela censura). A Democracia Cristã, que foi o centro de gravidade do “centrismo”, agiu com firmeza contra a produção cinematográfica que seguia as orientações do realismo socialista, de Moscou, portanto. Certo, mas é inevitável que suas obras, de O navio hospital a Alemanha, ano zero, estejam envoltas nos embates políticos e ideológicos da época. Vittorio de Sica, outro nome emblemático do neorrealismo, que também transitou do período fascista para a libertação, foi mais comedido no que se refere ao vínculo político: seus filmes assumem uma coloração política mais tênue diante de questões sociais, seu foco aponta para o problema da infância e da velhice nas ruínas da guerra. As duas trilogias de Rossellini, entretanto, são marcadamente políticas, e com isso geram inevitáveis embates ideológicos.

No set de “Europa 51”, com Ingrid Bergman (de pé)

O que me parece, e isso se reflete sem dúvida em O homem com a cruz e Roma, cidade aberta, é que Rossellini põe na frente dos embates ideológicos que opõem o fascismo e o comunismo o humanismo cristão. Este, por sua vez tem origem na encíclica papal Rerum Novarum, de 1891. Por meio dessa encíclica, a Igreja Católica adotou uma doutrina social que se contrapunha ao liberalismo e ao socialismo. Assim sendo, propôs ser portadora de uma ética que respondesse às necessidades profundas do homem moderno. O principal divulgador do humanismo cristão foi o filósofo francês Jacques Maritain, para o qual Deus é o centro do homem, o que implica que este é pecador, mas pode se redimir; e implica igualmente que, no mundo, o homem pode ser tocado pela graça divina e é dotado de liberdade. Seu filme seguinte a Alemanha, ano zero, Francisco, arauto de Deus (1949), talvez dê o tom do que para ele está em jogo quando consideramos os momentos contrastantes da vida política da Itália na década de 1940. E sua obra posterior, como revela Europa 51 (1952), traz à tona o quanto a religiosidade, em maior ou menor grau, perpassa sua obra como um todo. Quer dizer, com todos os riscos que sua posição pudesse comportar, ele parece imbuído do sentimento de que a mensagem cristã está além das particularidades políticas em cada momento.

O homem com a cruz e Roma, cidade aberta é onde de modo mais direto se pode aplicar o princípio rosselliniano do “homem e suas circunstâncias”, por conseguinte, a ética do humanismo cristão. Em ambos, não por acaso, a figura de um religioso preso à hierarquia da Igreja e suas escolhas movidas por um princípio: a mensagem de Cristo deve tocar o coração dos homens nos momentos mais difíceis. O capelão de O homem com a cruz toca o coração do ateu russo, e assim ambos rezam o Pai Nosso antes da morte; Dom Pietro, vigário em Roma, cidade aberta, antes de ser fuzilado, ao ouvir do padre que o conforta para ter coragem, responde: “difícil não é morrer bem, difícil é viver bem”: ambos então se dirigem à cadeira onde será realizado fuzilamento rezando o Pai Nosso. Nos dois filmes, as figuras religiosas estão acima das ideologias: o capelão no primeiro ignora fascistas e comunistas ao pregar a palavra de Deus; Dom Pietro, no segundo, afronta a hierarquia e rompe com o Tratado de Latrão, assinado em 1929 e que estabelece o catolicismo como religião oficial do regime de Mussolini. As duas escolhas tiveram desfecho trágico, ou de modo mais preciso conforme o cristianismo: sacrificial. Morreram e deixaram o sinal da graça divina, deixaram a mensagem da fragilidade humana diante do mistério dos desígnios de Deus.

E, de fato, o impulso religioso impregna os personagens da que, entendo, ser uma terceira trilogia rosselliniana: Stromboli (1951), Europa 51 e Viagem à Itália (1954), de cunho menos político do que de feição psicológica e existencial. Trilogia que, creio, fecha o ciclo de um dos grandes gênios da arte cinematográfica. Prolífico, sua obra se abre para outros caminhos, que instigam interpretações diversas da que se ensaiou aqui, mas que realçam seus múltiplos interesses e sua notável disposição para fazer do cinema um meio de elevação do espírito humano. Poucos cineastas deram à arte de fazer filmes uma dimensão, diria, metafísica, respeitando, claro, o delicado emprego desta palavra na filosofia: o cinema de Rossellini não é metafísico e, sim, pode ser visto nessa perspectiva; desde que o espectador veja, perceba em seu cinema e no mundo, uma dimensão que vá além dos particularismos políticos e suas injunções ideológicas.

Bergman, Rossellini e Mario Vitale dando orientações nas filmagens de “Stromboli”

Nesse sentido, justamente por que relegada ao ostracismo, sua trilogia fascista, ou militar, merece ser vista. De modo bem amplo, situada em contexto ideológico refratário aos princípios éticos e políticos neorrealistas, ela mantém continuidade tanto temática – as vicissitudes da guerra e a ação humana aos olhos da eternidade – quanto formal, pois a estética neorrealista absorveu de forma inequívoca pressupostos de seus filmes realizados no período fascista. O navio hospital, Um piloto retorna e Um homem com a cruz foram concebidos com imagens de arquivo, cenas em locações reais, atores não profissionais, diálogos simples e diretos, sem efeitos de linguagem ou de montagem, uso frequente de planos de conjunto e médios, sincronização posterior e condições de filmagens improvisadas. Esses elementos são característicos da estética neorrealista.

Admito, claro, que o terreno no qual Rossellini se movimentou é pantanoso. E que, evidentemente, o reconhecimento que lhe cabe pelas realizações neorrealistas faz jus ao que de mais elevado a arte cinematográfica fez. Seu senso de urgência em Roma, cidade aberta, Paisà e Alemanha, ano zero é uma virtude encontrada em poucos cineastas ao longo da história. Mas, por que se move em terreno pantanoso, sua obra no período fascista foi tragada pela história. O movimento da história, a esse respeito, é cruel e caprichoso.

Cabe-nos, então, realçando obviamente suas posições e escolhas controversas, jogar luz sobre sua trilogia fascista. Revê-la em outro momento considerando seu possível motivo de fundo: o humanismo cristão. E com isso possamos indagar que, somente com a situação de liberdade propiciada com o fim do fascismo, ele efetivamente tenha tido condições de desenvolver e amadurecer o que existia em germe no período anterior. Quanto contraposto aos filmes neorrealistas, sua obra anterior talvez revele irregularidades, carências, opções ideológicas, como a exaltação do Dulce, que não o colocariam entre os maiores diretores da história do cinema. Se ele não realizasse mais nada, talvez não teria tido mais importância do que, Blasetti, por exemplo. Contudo, a história girou com seu movimento dialético, e no giro da história seus filmes fascistas, com suas contradições (as fraquezas humanas), são o ponto de partida para sua monumental obra posterior.

 

Humberto Pereira da Silva é professor de história do cinema na FAAP e na Academia Internacional de Cinema e crítico de cinema. Autor de Glauber Rocha: cinema, estética e revolução (Paco Editorial, 2016) e membro da Abraccine.

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