Porta Para o Céu
Sessão verberenas traz filme marroquino inédito
Por Ivonete Pinto | 28.03.2021 (domingo)
Não cabe a nós, plantados no Ocidente cristão, julgar as opções filosóficas da diretora Farida Benlyazid, nutridas pela cultura, pela religião e pela geopolítica contidas no filme. As observações que seguem surgiram das imagens propostas na obra, amalgamadas no referido contexto e que se aproximam de nosso universo na medida em que o próprio filme faz este movimento.
Porta para o céu (Bab al-sama’ maftuh) foi exibido no projeto Sessões Verberenas, da revista Verberenas, comandada por mulheres realizadoras. Estava inédito no Brasil, apesar de ser uma produção de 1989.
Se é incrível que muitos não tenham ouvido ainda falar em Alice Guy-Blaché, imagine-se uma diretora marroquina. Um estudo sobre mulheres diretoras no Marrocos, Women in contemporary moroccan cinema (Dinia; Kenza, 2016), indica que Farida Benlyazid foi a segunda mulher a assinar um longa-metragem no país. A primeira foi Farida Bourquiba (Embers (al-Jamr/ La braise, 1984). Há alguns meses escrevi sobre um filme da primeira diretora da Armênia, Mariya Saakyan, realizado somente em 2006. Parece que os resultados dos movimentos feministas dos 1960 no mundo demoram a aparecer.
Farida Benlyazid tem atuação como roteirista, produtora e romancista desde os anos 1970. Mas foi com Porta para o céu que se tornou mais conhecida. Como sua personagem Nádia (a atriz francesa de ascendência marroquina Zakia Tahiri), também viveu no estrangeiro e é por aí que podemos adentrar o filme.
Nádia mora em Paris e volta para o Marrocos, para a cidade natal de Fez, porque o pai está muito doente. Seria uma despedida, pois ele vem logo a falecer. É esta protagonista quem demonstra de saída o estranhamento com a tradição local e manifesta desejo de confrontar esta tradição. Uma mulher entre dois mundos.
Os países que compõem a região do Magreb, entre eles o Marrocos, comungam tradições similares e dentro delas conceitos que embasam e unificam um pensamento sobre o Islã, tornando-o uma única nação (al-maghrib al-‘arabi). Esta união acaba tendo códigos próprios e dificilmente um ocidental cristão alcança alguma compreensão sobre o comportamento das pessoas. Aqui, nos interessa o comportamento de Nádia, cuja leitura em princípio não nos seria autorizada por conta desta distância de culturas. Entretanto, a personagem e seu enredo nos são apresentados em uma peça de arte, em tese de alcance universal. Além, é claro, do componente multicultural de Nádia, que nos permite minimamente compartilhar sua experiência.
Ainda sobre o Marrocos, vale registrar que em razão do seu processo de independência como colônia francesa, já discutia, mesmo que em escala pequena e insatisfatória para os padrões ocidentais, a emancipação das mulheres. Os movimentos de mulheres no Oriente Médio em geral produziram um pensamento que incorpora uma crítica ao modo de vida ocidental. Talvez por isto a personagem de Nádia, logo no início de seu conflito entre os dois mundos, profira um discurso contra os valores ligados ao dinheiro. Fenômeno similar pode ser observado na revolução islâmica do Irã. Havia também lá um processo modernizante e emancipatório que, com a queda da monarquia Pahlevi, passou a defender uma visão crítica quanto ao capitalismo representado pelo imperialismo americano. Então, uma chave para compreender Nádia passa por uma perspectiva histórica, embrenhada, claro, em paradoxos impostos pelas crenças religiosas. Como subtexto, é bom lembrar que a França de onde vem a protagonista vivia sob a influência da Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen. O líder de extrema-direita contrário aos imigrantes. A rejeição xenófoba aos marroquinos era a realidade que Nádia vivia em Paris.
Após a morte do pai, de ter despachado de volta para casa o namorado francês, Nádia é impactada com o desamparo da jovem empregada da casa da família que, solteira e grávida, é mandada embora. A consciência de que deve fazer alguma coisa pelas mulheres do seu país cresce e é mostrada numa dramaturgia didática. Fatos como a herança do casarão paterno e a primazia do irmão em relação a esta herança são elencados como fatores de uma crescente conscientização. Paralelo a isto, o convício com uma mulher mais velha, Kirana (Chaabia Laadraoui), faz Nádia se embrenhar por passagens do Corão e por rituais sufis que abrem sua percepção mística religiosa. A identidade cultural marroquina confunde-se com a identidade cultural do Islã.
Naturalmente, cada época tem suas crenças e a apropriação do conteúdo de um livro sagrado como o Corão, tanto para uso argumentativo a favor da liberdade das mulheres, quanto para seu cerceamento, deve ser visto com ressalvas.
Abrigo para mulheres – O efeito disto tudo é que Nádia usa o casarão como abrigo para mulheres desprotegidas pela lei e pela sociedade, num movimento de feminismo secular ─ que ela trouxe da França, pelo que seu figurino de chegada nos informa. Ao mesmo tempo, outra consequência a encaminha para uma aceitação de um sentimento religioso islâmico. O filme propõe, desta forma, um casamento entre militância social e engajamento espiritual-religioso de matiz mística, já que Nádia é iniciada na dança e na música sufi (incluindo até estados de transe, o que distancia esta escola islâmica do xiitas, por exemplo). Há décadas há um ativismo de mesquita, se pudermos chamar assim, que une mulheres em torno de preocupações sociais com deveres religiosos. O nó górdio deste ativismo está na independência em relação aos homens, na liberdade de inclusive optar por não casar (socialmente quase um interdito, pois a certeza de que mulheres precisam ser mães está enraizada atavicamente).
Porta para o céu é herdeiro de um cinema convencional que aposta numa narrativa de fácil assimilação e num estilo um tanto carregado, em que o crítico Manny Farber chamaria de arte elefante branco. E tem claros problemas de construção: personagens somem, as passagens de tempo não ficam claras, Nádia acaba comprando a casa paterna por um deus ex machina do roteiro, que a faz encontrar um tesouro em joias e assim solucionar o problema da compra da casa familiar.
O pai é figura positiva. Entra em cena com uma roupa ocidental – um terno escuro, um chapéu e uma bengala tipo Chaplin – para encontrar a esposa, uma francesa tentando aprender árabe. Aliás, esta aparência chapliniana do pai já começa como um comentário positivo, algo que remete a uma relação lúdica com este pai que, morto, vai aparecer fantasmagoricamente para Nádia e conduzi-la a encontrar as joias. Não é a mãe francesa, morta tempo antes que aparece em espírito para a filha, é o pai marroquino.
Uma admirável sequência de aparato documental nos mostra sem necessidade de didatismo a mistura de culturas, com mulheres totalmente cobertas, com outras de vestidos curtos, cabelos, maquiagem, etc. Nestas imagens, rodadas no entorno do bazar central de Fez, vemos homens vestindo jeans, outros a jelaba, a túnica comprida. Enquanto o filme nos diz, por imagens, que existe uma comunhão entre culturas, por outro, os conflitos de Nádia nos dizem que é preciso escolher um lugar.
O conflito identitário da protagonista aos poucos vai se resolvendo com sua adesão à religião. Se numa das primeiras cenas do filme Nádia diz textualmente que quer seguir as duas culturas, ao longo do filme fica claro que isto é uma impossibilidade. Um ponto de virada talvez seja o momento em que a personagem veste o manto branco do luto. Ali ela se transforma.
A transformação de Nádia pode ser problematizada em alguns aspectos, como o do feminismo, já apontado aqui. Existe um feminismo secular e um feminismo islâmico (a teórica Margot Badran refletiu sobre isto). Esta diferença é crucial para não rejeitarmos as opções da personagem. Embora permaneça uma contradição interna quanto à diretora, que se apresenta através de uma personagem autobiográfica ocidentalizada e secularizada no início do filme. Ela simplesmente vai mudando. E não há nada de errado em mudar, mesmo em direção a uma religiosidade que a libertaria do conflito. O problema está no caráter não progressista (não libertário, em essência), que envolve um desfecho pela união do casamento com um homem marroquino (a tal porta para céu do título). O paradoxo possivelmente esteja mesmo na relação entre religião e política e entre estes dois campos com o feminismo. A luta por salvaguardar a liberdade das mulheres costuma estar distante das pautas religiosas e políticas.
O final do filme aponta para o conformismo de modelo patriarcal. Ou seja, o feminismo islâmico de Porta para o céu pende mais para um lado.
Nádia se reconcilia com a religião e por extensão com a cultura marroquina, tornando-se uma mulher como as outras, amparando-se no casamento. O casal de braços dados e a câmera subindo ao céu é uma imagem difícil de absorver (Simone de Beauvoir se revirou no túmulo…). Só o casamento salva? Este final deve cair na conta de uma fatura de 40 anos atrás e de um país que ainda hoje briga com a tradição e a modernidade. Entretanto, e por isto, ter feito o filme com ideias mais ou menos progressistas já é um grande feito.
Diz uma legenda no início, que Porta para o céu é dedicado à Fatima Fihra, fundadora de uma das primeiras universidades do mundo. Pergunta que não quer calar: nem a educação salva?
Abaixo, Porta para o céu em versão completa, com legendas em francês.
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