26º ETV (2021) – Fuga
Um afegão e seu relato incomum
Por Ivonete Pinto | 16.04.2021 (sexta-feira)
A abertura da 26ª edição do É Tudo Verdade foi pouco usual ao exibir um filme animado. Pouco usual porque a animação costuma estar vinculada à fantasia e muitos a entendem como gênero, quando de fato é uma técnica em que cabem todos os gêneros, inclusive o documentário. Fuga (Flee, Din., Fra., Sue., Nor., 2021) é construído com técnica 2D. Com a ajuda dos universitários, podemos saber que se trata de uma simulação de animação tradicional, onde os movimentos não são fluidos e a profundidade e volumetria das imagens também são simuladas no 2D.
Para os que não são da área, pouco importa. Importa sim que se trata de uma história pungente sobre guerra e separações, que talvez teria passado despercebida se representada em live-action. Fuga se alia a projetos como Valsa com Bashir (Ari Folman, 2008), Persépolis (Marjane Satrapi, 2007) e, num certo sentido, a O menino e o mundo (Alê Abreu, 2013): fazem com que pensemos nas tragédias do enredo com o distanciamento provocado pela técnica.
Assinado pelo dinamarquês Jonas Poher Rasmussen, Fuga é uma coprodução com Dinamarca, França, Suécia e Noruega, mas os acontecimentos que originaram a trama surgem no Afeganistão.
O país é tido como o maior exportador de refugiados do mundo, só perdendo, atualmente, para a Síria.
O personagem central é Amin Nawabi, um afegão que vai parar na Dinamarca depois de um périplo cheio de aventuras e perdas. De civilização milenar (pertencia ao Império Persa, com registro de civilização há 3 mil anos A.C.), o Afeganistão é conhecido pelo fundamentalismo religioso islâmico, pelas atrocidades dos talibãs, e esta é apenas uma parte da história. Por ser rota de produtos para a Europa – já foi rota da seda em outros tempos -, é um país que interessa ao jogo da geopolítica, na disputa pelo controle da Ásia Central. Por isto foi invadido pelos soviéticos em 1979, expulsos em uma guerra civil vencida por uma das tribos afegãs (os talibãs) e atualmente é ocupado por forças da OTAN. É neste período histórico, da guerra civil com ascensão dos rebeldes talibãs, que se encontra a família de Amin, vivendo de forma “ocidental”, com a liberdade de pensamento, vestimenta e comportamento inaceitáveis pelos tresloucados radicais.
Tudo isto é mostrado rapidamente, com economia descritiva, auxiliada pela narração do próprio Amin. Diferente dos longas em animação aqui citados, Fuga tem um pé mais no documentário do que na ficção, embora possa-se argumentar que o simples relato, baseado em memórias pessoais, deveria ser encarado como ficção, pois ancora-se nas subjetividades da experiência, ainda que, neste caso, lance mão de eventuais imagens em live-action, meio que para ilustrar e chamar a atenção do espectador sobre a verdade factual. A live-action em Fuga funciona como naqueles filmes que iniciam com imagens de rotativas de jornais mostrando notícias ligadas ao tema que será explorado. Elas querem dizer que tudo o que o espectador verá é verdade. Um jogo dramatúrgico que funciona há séculos, operado na literatura também. Portanto, o diretor Rasmussen quer a adesão do espectador e ele a tem.
À parte o registro documental e a técnica da animação, o espectador ficará envolvido com as andanças de um personagem absolutamente humano, sem laivos de heroísmo. Amin Nawabi entra em cena como um intelectual acadêmico lembrando do passado através de uma estratégia narrativa comum: num divã de analista. Um passado que começa no Afeganistão ainda dominado pelos russos. A opressão, à época, mais de ordem política que de costumes, mostra um menino tendo uma infância livre e lúdica. Com a expulsão dos soviéticos por tropas de constituição religiosa, a vida da família Nawabi se complica.
Seu pai é preso e a mãe, com dois filhos e duas filhas, foge rumo à Europa. O roteiro inclui um ponto de passagem, Moscou, mas dali não conseguem avançar. Dependem de traficantes de gente, atravessadores de refugiados que agem com crueldade. Vale lembrar que a Rússia vivia uma profunda crise econômica com a queda do comunismo e o esfacelamento da URSS, a escassez de produtos e uma galopante corrupção em todos os níveis, incluindo à policial, que vai do achaque ao estupro. Como não têm documentos, os afegãos são iscas fáceis para o suborno. Muitas das situações trágicas do filme estão relacionadas a esta corrupção. Por conta disto, só Amin consegue ir para a Europa. E não para encontrar o irmão mais velho que estava na Suíça, como era o plano, mas acaba indo para a Dinamarca.
O drama é contado sem ordem cronológica e a montagem (já desenhada no roteiro, supõem-se), investe no suspense através da não linearidade. Nunca sabemos como a história de Amin vai terminar, como seus familiares sairão da Rússia. Em meio ao relato, Amin vai inserido um dado íntimo: desde criança, ele se compreende como homossexual, mesmo que só tenha descoberto o que isto significa depois da infância. Este elemento da personagem torna o drama maior, já que o público sabe o quanto sua vida seria impossível na cultura afegã. Para além dos interditos muçulmanos e culturais, o filme traz em sua base outro elemento que nos instiga a pensar: como funciona a memória; como a memória, quando falseada, vira algo genuíno, verossímil, histórico. Quando o relato vira a “verdade”.
Memória – A verdade nua e crua é indecente, como já disse Machado de Assis. Seria ela menos indecente porque fruto da memória? Curioso notar que esta edição do festival É Tudo Verdade, cujo nome é uma eterna provocação de sentido, faz homenagem aos 100 anos de Chris Marker e uma das ações foi a master class de Bill Nichols. Apaixonado por La Jetée, Nichols falou sobretudo da questão do tempo e da memória no filme de 1962. Discorreu sobre a “natureza paradoxal do tempo” como uma chave para entrarmos em Marker.
A expressão cabe para o que acontece com as memórias do afegão Amin. Em sua odisseia (sim, é uma odisseia de dimensões gregas o que ele viveu), ele precisou mentir no serviço de imigração, afirmando que sua família toda havia morrido na guerra, para só assim ser aceito como refugiado na Dinamarca. Passou tantos anos tendo que contar a mesma história inverídica que sua memória não se refere simplesmente mais a fatos do passado, mas a uma invenção onde o tempo trabalha para que se embaralhe fato e ficção. A memória do personagem de La Jetée, embora de outra natureza, porque ficcional, precisa da lógica da física quântica para poder ser ter crédito. O personagem de Marker volta ao passado para salvar o presente que está no futuro.
O caso de Amin é mais simples enquanto viagem no tempo; ele apenas rememora fatos, não se movimenta no tempo, exceto os tempos da linguagem do filme. Mas a relação com Marker parece que dá liga porque Amin deixou pontas no passado e um dia deverá voltar. Seu presente idílico com o namorado dinamarquês, sua trajetória acadêmica de sucesso são apenas uma circunstância. O passado o espera.
No presente, é um rapaz em conflito, mas bem sucedido que narra os eventos que duraram cerca de 20 anos. Capaz de elaborar todo sofrimento com sua bagagem intelectual, fazendo as devidas conexões com os episódios históricos. No entanto, é tentador imaginar este filme do ponto de vista da mãe que precisa manter seus filhos vivos e a carga de sofrimento que ela teve (e tem, a história não acabou). Em Fuga, ela quase não possui expressão, pouco fica em cena. Então, se o espectador conseguir ainda um outro distanciamento, além do que a técnica promove, tente pensar na figura desta mãe e sua infinita espera para entrar na Europa, em sua infinita espera por notícias dos filhos e do marido que ficou preso em Cabul. Tente pensar.
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