Trópico Fantasma
Longe do extraordinário
Por Ivonete Pinto | 25.05.2021 (terça-feira)
O longo plano de abertura de Trópico fantasma (Ghost Tropic, 2019) é estático e enquadra parte de uma sala de estar. Ele convida o espectador a entrar no universo de uma mulher ou no que se supõe ser a casa dela: uma sala arrumada, mas que deixa um cesto de roupas no meio do caminho. O plano se encerra com um fade out que escurece a sala como que a dizer que este não será um filme dado a facilidades. De fato não há muito o que fazer com esta informação de uma sala vazia, até terminarmos o périplo da personagem noite adentro, após ela perder sua estação ao dormir no metrô de volta para casa e, sem dinheiro, precisar fazer a pé todo o caminho. A cidade é a capital da Bélgica, Bruxelas.
A protagonista nos é apresentada em seu ambiente de trabalho, um shopping-center em que faz faxina no turno da noite. Sua condição de imigrante está estampada no lenço que cobre seus cabelos, colocados à moda islâmica mais tradicional. Percebemos logo que Khadija (Saadia Bentaïeb) é hipersensível desde a piada que contam no intervalo do trabalho, onde ela ri mais que qualquer um dos colegas. Adiante, uma sucessão de curtos episódios, com pessoas que ela vai esbarrando, igualmente servem para reforçar a sensibilidade desta mulher que, mesmo cansada, consegue ânimo para ajudar um morador de rua com hipotermia (supõem-se). A impressão é que ela enxerga o mundo pela primeira vez. E na verdade aquele mundo, daquele horário em que não há mais nem transporte público, é algo novo para Khadija.
O trabalho noturno, a solidão de seres que a sociedade não enxerga trabalhando e, portanto, são invisíveis, faz lembrar o uruguaio Gigante (Adrián Biniez, 2009) e seu guarda de supermercado que se relaciona com as pessoas pelas câmeras de segurança. O guarda se apaixona por uma mulher vendo-o pelas câmeras. Khadija não se apaixona por ninguém, mas ela descobre o que a filha faz com os amigos espiando-a a partir de um encontro fortuito, ainda tentando voltar para casa.
Concordo com Carlos Alberto Mattos, que elogiou a sequência da protagonista observando sua filha. É a mais bela cena do filme. Há um total domínio do espaço, do uso dos movimentos de câmera que levam o espectador a estar junto à Khadija, absorto com os desdobramentos de sua descoberta.
O diretor belga Bas Devos conduz a narrativa com sobriedade, a partir de um roteiro (dele mesmo) que foge aos grandes acontecimentos. Aliás, é quase um Ozu em seu desdrama. Mesmo a trilha sonora, é econômica. Percebe-se a presença do som, em momentos como quando Khadija dorme no trem e o silêncio toma conta do espaço. Ela para de ouvir e nós, espectadores, paramos de ouvir com ela. O que poderia ser apenas um maneirismo de quem estudou cinema, revela-se como um dado narrativo discreto, sem deixar de ser expressivo.
Parece que tudo é bem dosado na ambição de Trópico fantasma de rejeitar o extraordinário. Incluindo o significado do título do filme, que vai se infiltrando aqui e ali para justificar-se. Sabemos pouco de Khadija, apenas o que conta à única personagem que se interessa em conversar com ela. O que ficamos sabendo, não a torna especial ou diferente. Apenas uma viúva por volta dos 60 anos que, como tantas outras, ganha pouco em uma Europa fria e cara. E o que mais chama a atenção – pensando depois, não durante o filme – é quanto ele quebra a expectativa sobre o fato de Khadija ser muçulmana e isto ter que necessariamente repercutir no roteiro. Nove em cada dez filmes que trazem muçulmanos para o centro dos enredos, interessam-se em explorar o preconceito, as condições precárias de vida, a religiosidade, a inadequação social e cultural. Aspectos que não são negados, mas ocupam o lusco-fusco de Trópico fantasma. Bas Devos, em seus terceiro longa, nos entrega assim um filme sui generis, que valoriza as pequenas coisas da vida. Nos tempos atuais, faz muito bem para nos deixar com a mente quieta e o coração tranquilo.
O filme foi exibido na Quinzena de Realizadores, de Cannes, e está disponível na plataforma Supo Mungam Plus (clique aqui).
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