Roterdã, IFFR (2021) – A Felicidade das Coisas
A Felicidade das Coisas
Por Marcelo Ikeda | 08.06.2021 (terça-feira)
O longa-metragem de estreia de Thaís Fujinaga opta por uma vertente já com uma certa tradição no cinema brasileiro contemporâneo, em torno das dramaturgias do comum. A trama se desenvolve em torno do cotidiano de uma família em sua casa de praia em Caraguatatuba, no interior de São Paulo: a mãe, a avó e o casal de filhos pequenos. O pai, ausente, permanece na capital. A família e as férias, no entanto, estão longe de ser um porto seguro: o filme examina as tensões e as disputas no interior da família. Para isso, baseia-se na construção de uma grande piscina no quintal de casa, ainda que a praia não seja tão longe e ainda que não se tenha muito dinheiro para isso. A família é de uma classe média baixa, aquela que tem carro e casa de praia, mas a casa está caindo aos pedaços e enfrentam-se nítidas dificuldades financeiras.
Já por essa breve descrição, A felicidade das coisas apresenta-se muito próximo a um filme brasileiro de grande repercussão recente no mercado internacional: Benzinho, de Gustavo Pizzi, exibido no Festival de Sundance. Mas as semelhanças entre os dois filmes não se resumem ao plot, em que se examinam os conflitos entre uma família de classe média baixa que quer ir à praia, seus sonhos de ascensão e os conflitos com os filhos que crescem. No fundo, as semelhanças estão mais propriamente numa visão de cinema narrativo que utiliza recursos ligados ao prosaico e ao comum como uma estratégia para atingir uma certa camada de comunicabilidade sem deixar de se inserir num certo nicho de cinema autoral.
São filmes tão próximos que muitas das virtudes e também dos problemas de Benzinho aqui se repetem, numa outra escala. Ao mesmo tempo em que revela uma dramaturgia segura, com personagens e situações bem desenvolvidas, compondo um painel afetivo mas também nada condescendente com as contradições internas dessa pequena classe média, o filme também apresenta um olhar em torno de uma certa superfície que impede que o filme se abra a situações que expandam sua circunscrição estrita. Ou seja, no fundo temos um olhar que, buscando fugir dos estereótipos, acaba mergulhando neles, tornando os personagens e as situações apresentadas caricatos, sem densidade, quase como num raso humanismo.
De todo modo, especialmente para um primeiro filme, Fujinaga lida com habilidade com os elementos cênicos, especialmente com os atores, o que confere ao filme um tom homogêneo, com uma direção segura. No entanto, o filme parece não desenvolver sua premissa, não avança de fato para o interior dos personagens e para as suas contradições, mantendo-se a uma certa distância confortável. O filme parece demais confortável e seguro de si para um primeiro filme. O desafio de se realizar filmes em torno de uma dramaturgia do comum é que há o risco de o comum se tornar simplesmente banal, isto é, é preciso que o comum assuma um contorno poético, de modo que ganhe um contorno que aponte para uma certa ritualística dos corpos, tempos e rotinas para além das situações em si. As situações, se compõem uma estrutura de roteiro, são pouco potentes como olhar para esse universo, que ressoa por demais controlado por um roteiro de amarras. Se o filho sai com o pedalinho para além dos limites do clube, e na noite seguinte foge para uma aventura com os amigos, o filme acaba nunca saindo em nenhum milímetro das cercas impostas por si. Preocupada com o dinheiro para pagar a piscina e as contas de fim do mês, a diretora-roteirista parece se colocar do ponto de vista da mãe e não percebe que os filhos crescem e que neles despontam qualquer desejo que aponte para fora daquela condição interna: faz um filme por demais controlado e demarcado, o que no fundo é tudo o que não deve ser um primeiro filme, e especialmente num festival como o de Roterdã, que busca o futuro do cinema voltado à invenção e ao risco. O correto e preciso A felicidade das coisas pareceria melhor exposto numa vitrine como Toronto ou Mar del Plata do que em Roterdã, caindo como um corpo estranho, especialmente na Bright future.
Em um certo momento do filme, o filho foge pelo breu da noite, e mergulha num contato com a mata fechada, a água do rio, a amizade da juventude, ou seja, uma possibilidade de sair daquele ranço da casa ou da família um tanto chatas. Mas o menino também não responde às possibilidades, nem a narrativa. O filme dá voltas em torno de si mesmo, sem saber o que fazer. Volta ao clube, volta à praia. A mãe vê um casal na praia, mas permanece distante, não interage, não se transforma. O menino volta com os amigos para o clube elitizado que ele nem gostara, fora a piscina. Nesse momento curioso em que o filme parece apontar a possibilidade de romper suas armaduras, parece como um cachorro domesticado criado em casa que finalmente vai às ruas mas não sabe o que fazer, como se portar. O personagem também não se transforma, as situações não revelam potência para mergulhar em deriva. O filme não se joga da ponte com o personagem, mas observa em conforto olhando nas margens. Não é que falte risco ou coerência a A felicidade das coisas, o que falta mesmo é aquele gosto pelo cinema, aquele gosto pela vida, aquele desejo de ser menino e fazer alguma travessura. Excessivamente consciente de seu lugar, A felicidade das coisas mostra que o talento de Fujinaga só poderá avançar se ela puder/quiser deixar muitas das suas relações de ancoragem para trás. O filme também pode ser inscrito no corpo de um certo cinema paulista, em que listo filmes como Mare nostrum, de Ricardo Elias, ou Pela janela, de Caroline Leone, que revelam essa mesma busca por um cinema mais inventivo, por meio de personagens que dialogam com uma pequena classe média, mas que permanecem ancorados numa certa relação de conforto que restringe seu campo, e que acaba expressando uma certa repressão dos desejos.
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