Roterdã, IFFR (2021) – Capitu e o Capítulo
A resistência do cinema de Bressane é continuar teimando em ser coerente e livre
Por Marcelo Ikeda | 04.06.2021 (sexta-feira)
Este é o mais novo capítulo na imensa filmografia de um dos mais legítimos representantes de nosso cinema de invenção. Capitu e o capítulo toma como ponto de partida uma espécie de adaptação livre do mais conhecido romance de Machado de Assis. Mas, em se tratando de Júlio Bressane, não se trata exatamente do que se espera de uma adaptação: é apenas um ponto de partida para que o cineasta possa realizar uma espécie de filme-ensaio sobre alguns temas recorrentes: a relação entre amor e desejo, a falência do controle do instinto, as dobras entre o masculino e o feminino, entrecruzado com reflexões sobre o próprio processo de criação.
Vemos, então, o próprio Machado, representado de forma elegante por Enrique Diaz, em seu ateliê de criação, enquanto escreve ensaios e recita, para a câmera, reflexões não propriamente sobre Casmurro ou mesmo sobre seu próprio processo de criação mas sobretudo sobre a literatura brasileira. Machado reflete especialmente sobre a contribuição e o destino dos poetas românticos brasileiros, como Álvares de Azevedo e Junqueira Freire, que criaram grandes obras mas morreram com pouco mais de vinte anos. É curioso pensarmos que o septuagenário cineasta, que realizou mais de vinte filmes (já perdi a conta), se volta para as primeiras obras dos jovens poetas brasileiros de dois séculos atrás. Se a sociedade contemporânea impera a imposição de pautas em regime de urgência, Bressane busca deslocar o seu olhar para uma investigação sensível do processo criativo numa linha completamente antípoda às urgências geralmente impostas pela mídia ou pelos modismos do momento.
Bressane permanece fiel a um desejo de criação absolutamente livre e independente, prosseguindo sua trajetória de mais de cinquenta anos. O Casmurro de Bressane acaba se tornando uma espécie de alter ego do próprio cineasta, em torno de suas reflexões e delírios. Assim, é possível identificar uma série de paralelos com projetos anteriores de Bressane, que ressoam de formas múltiplas nesse Capitu. Devemos nos lembrar não apenas que Bressane já havia adaptado o universo machadiano em Brás Cubas (1985) mas em como o filme revisita e reatualiza diversas das pulsões do cinema de Bressane em diferentes momentos. Para estimular essa continuidade, que surge mais como sugestão do que como relação estrita, surgem na tela trechos de diversos filmes de Bressane, quase com fios desencapados em torno da memória afetiva do realizador. Ao mesmo tempo, Bressane prossegue uma linha de filmes mais recentes, como o homem emudecido diante da volúpia feminina (Garoto), as nuances entre a relação de um casal na esfera doméstica (Beduíno) ou o cinema-ensaio de fundo infinito (Sedução da carne).
Ao mesmo tempo, se Bressane prossegue e recicla eternos temas, Capitu e o capítulo nunca deixa de nos surpreender e nos encantar. Não deixa de ser curioso vermos o nosso maior representante do cinema de invenção filmar uma produção da Globo Filmes, com cenas de estúdio. A filmagem em estúdio em fundo infinito, algo que Bressane já havia experimentado em Sedução da carne, insere o cineasta numa nova zona de texturas, um lugar indefinido, com jogos de luzes e movimentos precisamente demarcados. Ao mesmo tempo, a coprodução com a Globo parece ser um arranjo de produção cavado por alguns de seus colaboradores que trabalham na emissora, uma vez que o filme é o antípoda do que se poderia esperar de uma obra da Globo Filmes ou de qualquer debate sobre uma suposta “estética televisiva”. Para aqueles que estudam a intermidialidade ou a intertextualidade no cinema, este é certamente um prato cheio. Capitu… é também um filme sobre o processo artístico, pela forma livre como Bressane problematiza as fronteiras entre o cinema, o teatro, a literatura, a dança, a música, a pintura e a arquitetura. Um dos principais pontos de interesse do filme é a forma livre como o filme transita entre diferentes modos de expressão artística, como um jogo hipnótico que desestabiliza o espectador. Ao mesmo tempo que Bressane nos intimida com seu rigor estilístico e sua grande erudição formal, seu cinema possui um certo desejo de inocência, ou ainda, um certo humor combinado com leveza, uma irreverência que busca evadir o filme de qualquer significado teórico mais profundo, que procura desestabilizar a razão como cerne da produção artística e mergulhar o espectador na possibilidade de uma experiência, sobretudo afetiva. Podemos listar algumas cenas nesse sentido. Os dois casais que giram numa dança improvisada num pequeno salão de estúdio. O homem que desce as escadas cambaleantes como uma criança-Nosferatu expressionista de coração partido. A incapacidade dos homens em lidar com as contingências do mundo, absortos e inebriados pela beleza e pelo encanto das mulheres. Mariana Ximenes, meio como Cleópatra, que se recusa a sair de sua cama, num dos momentos mais mágicos do filme, quase como uma pornochanchada inocente (nada inocente, toda inocente).
É curioso pensamos nesse cinema de Bressane tendo sua estreia mundial no Festival de Roterdã, num momento em que o Brasil agoniza, que o cinema brasileiro fenece. A liberdade, o cinema. Mais de cinquenta anos de um processo criativo que dá às costas para o mercado, para a mídia, para o reconhecimento fácil, para as alianças oportunistas, para o chauvinismo de nossos grupos sociais. A liberdade, o cinema. Para poucos, muito poucos, cada vez menos, cada vez mais. Mais uma vez, uma vez outra, uma outra vez. Com ou sem Globo Filmes, com ou sem Roterdã ou Locarno, com ou sem Ancine, pouco importa: o cinema de Bressane permanece vivo contra todos os prognósticos. E se termino esse texto com essa espécie de exegese moralista, em nenhum momento o filme ou o próprio autor cogita em fazer esse discurso apologético: a política e a resistência do cinema de Bressane é continuar simplesmente girando em torno de si, teimando em ser coerente e livre ainda assim, mesmo diante de tudo, mesmo diante do fim.
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