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Críticas

Caros Camaradas

Quando a morte estabelece um novo equilíbrio.

Por Luiz Joaquim | 31.07.2021 (sábado)

Não é sempre que nos cai no colo um filme russo a respeito do regime soviético pós-Stalin. E ainda mais sob a batuta do veterano Andrei Konchalovsky, que conquistou o Ocidente em 1984 com o incontornável Os amantes de Maria, engatando, no ano seguinte, o eletrizante Expresso para o inferno.

 Sua mais recente ficção, Caros camaradas: Trabalhadores em luta (Dorogie Tovarishchi, Rus. 2020) foi lançado quinta-feira (29) nos cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador e Brasília e é ambientado entre 1961 e 1962.

Isso significa que estamos num período de conturbada tensão interna na URSS, vivendo um conflito de gerações em parte estimulada pelas denúncias feitas contra o falecido Stalin pelo então novo lider soviético, Nikita Khrushchov, em 1956 no histórico 20º Congresso do Partido Comunista na União Soviética.

Para situar o leitor sobre o contexto político, vale dizer que foi naquela edição do Congresso que o sucessor de Stalin evocou Lenin e condenou o até então incontestável regime stalinista. O que, depois, geraria o Plano da Coexistência Pacífica, propondo um relacionamento amigável entre países capitalistas e socialistas. Plano, a propósito, que terminou por levar a chamada Ruptura Sino-Soviética, pela discordância de Mao Tse-tung, ao entender que a beligerância entre os países com ideologias distintas deveria sim ser mantida naqueles anos da chamada Guerra Fria.

Com o detalhe que o grau de sigilo, para o resto do mundo, sobre o que acontecia dentro do bloco soviético naqueles anos poder ser hoje comparado (e ainda sai perdendo em termos de sigilo) para o que hoje acontece na Coreia do Norte de Kim Jong-hu

Em Caros camaradas, Konchalovsky nos joga a perspetiva sobre aquele então caldeirão fervilhante a partir dos olhos da empertigada stalinista Lyuda (Yuliya Vysotskaya, brilhante): funcionária do Pardido Comunista na pequena cidade de Novocherkassk e inflexível como uma rocha em sua crença na correção e coerência do Partidão.

Para desenhar o drama que Lyuda vai experimentar nesse histórico momento de Novocherkassk nos a vemos vivendo em sua própria casa entre dois mundos, com o seu velho pai, saudosista dos tempos de Lenin, e com sua jovem filha, Svetka (Yuliya Burova), adepta das ideias de Khrushchov.

Lyuda (Yuliya Vysotskaya), em conflito com o saudosista e desesperançoso pai

Konchalovsky traz para o seio dessa família, até ali vivendo em tolerável harmonia – ainda que com ideais políticos distintos -, as tensões sociais que se desenrolavam na rua, desembocando no Massacre de Novocherkassk, ocorrido nos dois primeiros dias de junho de 1962.

O estopim, no caso, foi a greve dos operários de uma fábrica de trens, que se recusaram a trabalhar em função da diminuição de seus salários num momento em que a comida começava a escassear e os preços a aumentar. O movimento logo se espalhou pela cidade, com jovens simpáticos à causa daqueles operários, o que gerou uma reação desproporcional da alta cúpula do Partido: abrir fogo contra os manifestantes em plena praça pública, quando a Constituição soviética estabelecia claramente que o exército não poderia usar munição para conter manifestações nas quais seus irmãos compatriotas fossem protagonistas.

É com o desaparecimento da jovem Svetka no massacre promovido pelo exército – abafado pelo governo soviético durante os 30 anos seguintes -, que sua mãe Lyuda se vê pela primeira vez num conflito ideológico.

Como aquela causa, que Lyuda defendeu por toda sua vida, foi capaz de promover aquela atrocidade contra seus próprios irmãos, e por que sua filha, uma inocente, estava desaparecida apenas por pensar diferente?

Sabedor do poder dramático dos acontecimentos naquele sangrento junho em Novocherkassk,  Konchalovsky nos dá uma encenação tão econômica quando competente para traduzir a sensação de desnorteamento dos manifestantes no momento que em que alvos começam a ser atingidos por atiradores de elite da KGB.

A sequência em que Caros camaradas nos dá a perspectivava do caos na praça sob ataque, observada de dentro de um salão de beleza, é uma pequena  peça de horror cinematográfica, com o preto e branco no formato quadrado (1,33:1) do jovem diretor de fotografia Andrey Naydenov emprestando uma verossimilhança com o habitual material cinematográfico russo que se produzia naqueles anos 1960.

E a parecença estética não encerra aí. Konchalovsky e Naydenov compõem enquadramentos incomuns nos 2020, mas bem familiares ao cinema russo de 60 anos atrás.

Caros camaradas também tem como mérito apresentar às novas gerações do século 21 uma situação infelizmente reconhecível agora também no mundo ocidental, principalmente no Brasil dos últimos anos, ou seja, uma cegueira ideológica, acima do bom senso e do bem comum,  que foca a ordem pela força. Custe o que custar.

Curiosidade: Caros camaradas integrou a seleção do Festival de Veneza em 2020 e foi o filme indicado da Rússia para concorrer ao Oscar estrangeiro de 2021.

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