Roterdã, IFFR (2021), Diário #4
O cinema-de-problema-de-pesquisa, por Marcelo Ikeda.
Por Marcelo Ikeda | 05.07.2021 (segunda-feira)
Damascus Dreams, de Émilie Serri – Pois aqui no meu sofá acalorado em Fortaleza, quis o destino, que sempre conspira a favor, que o IFFR viesse até a mim, nesse estado de delírio cinético. Com a vac-cine lag, as imagens e sons começam a delinear uma espécie de nuvem de tags na minha cabeça em delírio. Talvez por todos esses efeitos, começo a me dar conta como são diferentes os filmes entre si, mais do que nas edições anteriores. Meu estado de confusão mental entra em ebulição.
O cinema contemporâneo tem um certo quê de uma arte contemporânea, em que o diretor-artista precisa partir de uma premissa que é um problema de pesquisa. Ou seja, é como se o diretor, diante do panorama de possibilidades estilísticas do cinema hoje, nesse mundo de cada vez maiores hibridismos e urgências, tivesse que se posicionar com um ponto de partida que coloca uma questão para o mundo e para o cinema de hoje. Ou ainda, dada a tradição do campo do cinema, e dados os elementos postos em debate no curso do cinema contemporâneo, o filme precisa ter um ponto de partida que instaure uma contribuição original dentro do seu campo.
Posso dar alguns exemplos. Damascus dreams (foto acima), da canadense Émilie Serri (como o nome prenuncia, da parte francesa do Canadá), tem sua família de origem síria. Seu filme está bastante bem circunscrito em um campo específico do cinema contemporâneo: o documentário autobiográfico em primeira pessoa, em estilo poético, em que a própria realizadora, ao buscar os laços afetivos de sua origem étnica, também aborda na verdade questões coletivas como as reminiscências das culturas diaspóricas, por meio de um olhar íntimo sobre a identidade e a memória. A seleção do filme se justifica pela habilidade como a realizadora domina os recursos desse campo, e pela delicadeza de seu olhar poético sobre uma questão tão importante no mundo contemporâneo. No entanto, o filme se insere confortavelmente em um campo já bastante demarcado, sem provocar nenhum atrito, questão ou problema aos contornos já estabelecidos no interior desse campo, de modo que seu impacto (por esse ponto de vista) é reduzido. O filme está lá porque cumpre um papel de reforçar a importância de um campo relevante no cinema independente contemporâneo, é bem realizado, tem momentos tocantes, mas pouco acrescenta a um panorama de possibilidades do cinema do futuro – meta principal de um festival como Roterdã, especialmente em sua seção Bright future.
An unsual summer, de Kamal Aljafari – Outro exemplo seria An Unusual Summer, do palestino Kamal Aljafari. Quase como uma peça de arte contemporânea, sua principal contribuição está na originalidade do dispositivo, de forma que o filme poderia ser tranquilamente uma instalação. Todo o filme apresenta imagens de uma câmera de vigilância instalada pelo pai do realizador, que mostra imagens da calçada da rua em frente à sua casa, que também serve como uma espécie de estacionamento dos veículos do prédio em frente. A câmera foi instalada por conta de um arrombamento de um veículo. No entanto, o que seria um instrumento de vigilância acaba curiosamente assumindo um olhar poético por parte do realizador.
Essa é a originalidade de sua contribuição no contexto do cinema contemporâneo. É quase um filme-de-arquivo com uma imagem de câmera fixa (uma imagem precária, de um circuito fora do campo cinematográfico, produzido previamente, sem nenhuma consciência de que essas imagens seriam utilizadas em um filme), que passa a ser reapropriada, ressignificada, num gesto do realizador que retira seu contexto de origem contaminado pela vigilância, e a revaloriza, como um campo da dramaturgia do comum. Os breves momentos do cotidiano em que os vizinhos passam, a pé ou de bicicleta, a rotina desse pequeno local, alguns pequenos gestos passam a ser supervalorizados pela câmera, que chega até mesmo a reenquadrar (em zoom) alguns movimentos distantes na periferia do plano.
O que é curioso em An unusual summer, até mesmo pelo título, é certa relação que o filme implicitamente desenvolve com o primeiro cinema – aquele gesto aparentemente despretensioso do cinema dos Irmãos Lumière de simplesmente observar o movimento do mundo na sua beleza de pequenos gestos. Ao mesmo tempo, essa imagem despersonalizada acaba assumindo um olhar íntimo para o realizador pois apresenta sua vizinhança, sua rotina e seus modos de ser, especialmente quando percebemos que se trata de um material de arquivo dessa câmera instalada pelo pai do realizador, já falecido. An unusual summer não deixa de abordar questões sobre a memória e a identidade da região do Oriente Médio, mas de forma muito mais original, complexa e sutil que o filme de Serri. De todo modo, trata-se de um filme mais próximo do campo das artes visuais do que do cinema contemporâneo, uma vez que a fruição em si do filme é um tanto desinteressante em termos do desenvolvimento estilístico, mas sua contribuição está na originalidade de sua premissa-dispositivo, e como ela insere questões (ou seja, como parte de um problema de pesquisa) sobre o estatuto da imagem na contemporaneidade, e como o filme ressignifica as imagens de vigilância para um contexto afetivo, inserindo um olhar surpreendente e inesperado para a sociedade palestina.
Trata-se, portanto, de um filme barato, com pouquíssimos valores de produção, mas que atrai a atenção de um grande festival como Roterdã exatamente pelas características acima descritas. Nesse sentido, An unusual summer tende a chamar bem mais atenção que Damascus dreams.
0 Comentários