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Festivais

Roterdã, IFFR (2021), Diário #6

O Documentário e suas tradições: “Birds of América” e “Berg”, por Marcelo Ikeda

Por Marcelo Ikeda | 05.07.2021 (segunda-feira)

acima, imagem do filme Berg.

Birds of America, de Jacques Loeuille – Um ponto em comum entre os quatro filmes anteriormente citados é que se tratam de documentários. De fato, o documentário é um eixo fundamental quando pensamos no cinema de invenção hoje, porque o formato permite justamente problematizar as fronteiras entre o real e o encenado, ou ainda, são filmes que falam sobre questões do mundo e da nossa sociedade mas também lidam com questões específicas sobre a linguagem. Num momento em que o mundo reflete sobre as fronteiras, são filmes que desestabilizam a demarcação estrita de fronteiras. São filmes que desestabilizam as heranças canônicas do cinema, em torno das identidades prévias.

No entanto, o documentário é um campo extenso, um horizonte heterogêneo e, acima de tudo, extremamente movediço. Existem dois filmes curiosos que reafirmam e expandem essa campo pantanoso que é o documentário, em termos de sua tradição mas também de seus desafios.

A princípio, fiquei assustado como um documentário como Birds of America foi selecionado para o Festival de Roterdã. Trata-se de uma grande produção para um documentário, com recursos da Arte e distribuído pela MK2 francesa. E um documentário de estilística clássica bastante convencional, com narração, entrevistas, imagens de belíssima fotografia como ancoragem, etc. No entanto, por trás de seu tom extremamente convencional, surge uma abordagem inusitada. Birds of America é um filme sobre a história da civilização norte-americana mas contada como se fosse uma contra-história, ou ainda, como se fosse escrita a contrapelo, como diria Walter Benjamin. Claro, uma história crítica, porque contada pelos franceses rs. Mas não somente isso. O filme tem como ponto de partida um artista. O francês John James Audubon pintou aves no Oeste americano. Sua pintura era vista como convencional, como mero registro de dezenas de aves, mas aos poucos seu trabalho também começou a ser valorizado como artístico, pela graça dos traços e das cores. De todo modo, Audubon pintou praticamente todas as espécies de pássaros da Costa Oeste. Algumas delas permanecem hoje somente nos quadros de Audubon, visto que a marcha do progresso resultou no extermínio de várias dessas espécies. Desse modo, Birds of America utiliza como ponto de partida uma questão ecológica (o filme se desenvolve como um barco que percorre as margens do Rio Mississippi) para refletir como a história da civilização norte-americana é um percurso de destruição da natureza. Nessa relação entre história e ecologia, Birds of America atrai seu interesse por meio de uma narrativa elegante, de belas imagens, apesar de seu tom excessivamente convencional, especialmente para um festival do porte de Roterdã.

Berg, de Joke Olthaar – A natureza ou a ecologia sempre foram uma premissa cara aos documentários poéticos. Podemos dar vários exemplos, entre os filmes de Joris Ivens, como Regen nos longínquos anos de 1929, ou mesmo os extasiantes filmes de Artavazd Pelechian. Berg (foto acima), da holandesa Joke Olthaar, parece dialogar com essa tradição. O filme é uma viagem visual impressionante pelas altas regiões montanhosas. É um filme-de-paisagem com base na fruição das imagens de uma fotografia exuberante em preto-e-branco. Não há, portanto, informações quaisquer. Raramente vemos uma ou outra pessoa ao longe, sem identificação, quase como se fosse um dos animais que insistem em sobreviver nessas condições. É um filme de paisagem que parece com um filme de arquitetura. O impressionante de Berg é justamente como o filme se concentra nessa sensação de espanto diante da beleza das paisagens naturais – e nada mais lhe importa. É, portanto, um trabalho mais próximo ao das artes visuais, ou até mesmo, alguns diriam, ao da fotografia. O tempo é uma variável importante em Berg, assim como o som, mas é possível afirmar que eles estão em escala desequilibrada quanto à importância visual da imagem, que ocupa toda a atenção do trabalho de linguagem. Nada poderia ser mais anticonvencional, pensariam alguns. Ao mesmo tempo, o prazer visual do filme não está muito longe da sedução fotogênica de uma National Geographic, e seus destinos exóticos. No entanto, a austeridade da materialidade física de Berg afasta uma tentação fotogênica-publicitária dessas imagens, mas em alguns momentos chega a tocar essa possibilidade.

De todo modo, são dois documentários curiosos por como dialogam com certas vertentes mais tradicionalmente consolidadas no campo do documentário para levá-las para um lugar um pouco diferente – diferente ma non troppo rs.

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