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Festivais

Roterdã, IFFR (2021), Diário #7

O documentário e suas transições: “Ao longe minha sombra vagueou” e “O dia hoje”, por Marcelo Ikeda

Por Marcelo Ikeda | 05.07.2021 (segunda-feira)

Ao longe minha sombra vagueou, de Liao Jiekai e Sudhee Liao – De todo modo, é muito louco sair de um filme todo feito com uma câmera de vigilância nas ruas da Palestina e entrar num filme de alta fotografia nas montanhas rochosas sabe-se-lá-de-onde. Os dois filmes dialogam com o primeiro cinema, mas de formas abissalmente diferentes. Esse é o tipo de experiência que se espera de um festival como Roterdã, que busca apresentar um amplo panorama de possibilidades diversas para o cinema de invenção na contemporaneidade.

Ainda quero permanecer um pouco mais no campo do cinema documentário, examinando outros filmes que buscam justamente problematizar as suas fronteiras, inserindo outras bordas de experimentação com outras formas de expressão.

Faraway My Shadow Wandered (foto acima), de Liao Jiekai e Sudhee Liao, é um filme sobre um encontro. Junya Kobayashi abandonou a promessa de prosseguir os cultos religiosos de seus ancestrais e decidiu morar em outra cidade. Num bar, por acaso, conhece Sara Tan, uma estrangeira que busca novas paisagens para encenar uma peça de dança contemporânea. É difícil precisar ao certo sobre o que é esse filme, mas é certo que é algo que só seria possível sendo um filme da imensa cultura oriental. Essa dificuldade de expressar os sentimentos, essa abordagem espiritual a partir do silêncio e da observação. Enquanto Junya tenta acertar as contas com seu passado, Sara busca o encontro preciso entre corpo e paisagem. A dupla de realizadores de Singapura aborda, com uma enorme singeleza, contornos íntimos da alma humana, expressos de maneira sutil, de forma extremamente delicada. Essa melancolia que exprime o filme se revela também pelo uso da paisagem e da luz: o filme inteiro coberto de neve, com uma paleta de cores sóbria, entre o cinza e o marrom, quase monocromático. Faraway é um documentário mas também um filme-ensaio sobre a relação entre o processo de criação e a vida, de um ponto de vista transcendente, uma religiosidade terrena. Encontro entre masculino e feminino, entre o passado e o futuro, entre a alma e o corpo. Também entre o cinema e a dança. Sara dança entre a paisagem, repleta entre as ondas do mar e o relevo rochoso – a dança contemporânea é parte expressiva desse filme, algo raro no cinema oriental. O encontro é transformador, não apenas para os personagens mas para o espectador. O filme se move, como um corpo que dança, que encontra o seu próprio lugar no mundo, que dança como um movimento de afinação do seu próprio espírito. O título (algo como “Ao Longe Minha Sombra Vagueou”) expressa essa beleza poética entre o corpo e o espírito, com base no movimento. Esse belo filme tem uma beleza discreta e serena, difícil de ser apreciada, mas absolutamente encantador, bebendo na fonte da mais nobre arte oriental.

Um dos raros diálogos do filme me chamou a atenção. No bar, Junya pergunta para seu chefe: como marinheiro, qual foi o seu momento mais difícil no mar? Ele responde que foi lidar com as pessoas, uma vez que, como o barco é pequeno, não há lugar para fugir e se esconder, no meio de uma discussão. Em seguida, ele se lembrou de um caso em que o motor apagou em pleno alto mar, e que os tripulantes tiveram que esperar o curso do vento até chegar à costa, o que demorou semanas. Mas, ainda assim, ele considera que o mais difícil foi lidar com o ego das pessoas. Nenhuma atribulação é mais desafiadora do que a tarefa de conviver. Um pequeno conto perdido no interior do filme. Nada mais oriental rs.

O dia hoje, de Maxence Stamatiadis –O dia hoje (Au Jour D’aujourd’hui), de Maxence Stamatiadis, surpreende pela sua exquisitice rs. Poderíamos ver o filme a princípio como um documentário sobre a vida de um casal na terceira idade, Edouard e Suzanne Mouradian. A primeira parte do filme apresenta o cotidiano da vida do casal e seu convívio com os netos. Já nos surpreende a forma inusitada como o casal vive: ele gosta de games violentos e troca mensagens bizarras sobre a morte, e o filme apresenta diversas situações um tanto desconfortáveis, por meio de uma linguagem de cortes rápidos, com planos fechados que muitas vezes desorientam o espectador. Não se trata de um típico casal de velhinhos e sua rotina bem-comportada rs. No entanto, o maior impacto está por vir. Após a morte de Edouard, o filme se transforma completamente, sendo encenado no futuro rs. Algo um tanto atípico para um documentário, ser passado no futuro, como um filme de ficção científica rs. Suzanne, com saudades do esposo, sentindo-se sozinha, passa a aderir a um aplicativo do futuro que traz o seu marido de volta em três dias rs. O mais surpreendente e hilário é que essa situação realmente acontece, por meio de um aplicativo bizarro, que faz com que o marido retorne ao seu corpo, mas flutuando acima de sua cabeça, quase aos moldes de uma auréola, um hilário símbolo de infinito que gira em torno de si. Quando retorna, Edouard toma coragem para concretizar o que não conseguiu fazer na sua primeira vida: matar as pessoas. Assim, esse velhinho simpático se torna uma espécie de serial killer. Por meio dessa narrativa bizarra, que combina o documentário, a ficção científica e o cinema B de gênero, O dia hoje faz uma crítica bem humorada às relações humanas na contemporaneidade, a falta de afeto entre pessoas próximas e o efeito das redes virtuais na intimidade. No entanto, a forma despojada, fora de qualquer tom convencional, como o filme trata essas questões surpreende o espectador. O dia hoje consegue estabelecer uma atmosfera própria, um tom particular, que sustenta o seu interesse. Algumas vezes, pelas situações bizarras, ele quase se parece com um filme de John Waters. É um filme deliciosamente impuro, com um humor negro sobre o nosso mundo contemporâneo. De todo modo, é o avesso da profunda delicadeza espiritual zen do filme da Singapura analisado anteriormente.

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