Roterdã, IFFR (2021), Diário #8
Tudo tem um fim: “O filho” + “Phoenix”, por Marcelo Ikeda
Por Marcelo Ikeda | 05.07.2021 (segunda-feira)
– acima, foto de Phoenix
O filho, de Noushin Meraji – Como tudo na vida, os festivais de cinema também têm um fim. Eles acabam, e a vida volta ao normal. Ao final de tantos filmes em tão pouco tempo, em que o crítico deve usar toda a sua experiência para conseguir digeri-los sem nenhuma grave indigestão, não se sabe se a sensação é de tristeza ou de alívio. Tristeza por não ter conseguido ver mais filmes (nunca conseguimos ver todos); alívio porque todas as outras coisas acumuladas na vida precisam prosseguir. Gostaria de ter visto mais, de ter escrito mais, de ter pensado mais, mas não deu tempo. Os festivais de cinema são como a vida, e só nos resta pensar que, se só conseguimos fazer o que fizemos, é porque o destino conspirou a favor.
Toda cobertura tem um fim. E, desta vez, acabei agrupando duplas de filmes numa perspectiva relacional. Uma forma de tentar aproximar filmes tão diferentes entre si. Agora, vejo que restam dois filmes que não consegui agrupar em nenhuma categoria. São dois filmes de ficção, creio eu. Bom, de todo modo, parece ser uma boa forma de encerrar essa cobertura.
O filho (Pesar) é um exemplar do cinema iraniano, uma das mais destacadas cinematografias do mundo. Mas aqui estamos num território bem distante dos poéticos relatos de um Irã rural. Quase todo passado no interior de um apartamento, Pesar é sobre a relação de uma mãe idosa e seu filho solteirão, que vive com ela. Muitos filmes já foram feitos a partir de uma relação entre mãe e filho, mas ainda assim sinto que se trata de um tema inesgotável. Em Pesar, a relação entre ambos não é totalmente de afeto: as tensões, as disputas, as provocações entre ambos revelam, em pouco tempo, as limitações dessa pequena família. Poucos elementos externos interagem nessa narrativa: o outro filho que mora nos Estados Unidos, a vizinha que cuida de um pássaro. No entanto, o que é curioso em Pesar é que uma dramaturgia de vocação tipicamente realista vai ganhando um contexto cada vez mais ambíguo, de modo que elementos não realistas vão contaminando o filme, sem que ele abra mão de sua base realista a partir da verossimilhança. A partir de um incidente (não vou revelar aqui), as reações do filho vão ficando cada vez mais estranhas, quase ao ponto da não verossimilhança. Desse modo, começamos a perceber que Pesar não é propriamente sobre a relação entre mãe e filho, mas se concentra no perfil psicológico desse filho, esse rapaz que viveu tanto tempo enclausurado com a mãe que não sabe mais o que é o mundo para além de si. Ao final, as mulheres do filme quase não possuem voz ou autonomia, algo ainda mais estranho quando percebemos que é dirigido e roteirizado por uma mulher, a cineasta Noushin Meraji. Talvez o filme promova um retrato da sociedade iraniana, em seu encapsulamento que ruma em direção à loucura e à morte. No entanto, se é essa a intenção, o tom de farsa atenua o tom crítico, dando ao filme um certo tom de comédia de humor negro.
Phoenix, de Bram Droulers – Já Phoenix, de Bram Droulers, também se passa quase todo no interior de uma casa, em que o protagonista recebe uma viajante estrangeira hospedada pelo couchsurfing, e descobre que já se conheciam. Phoenix é um filme bastante jovem, de personagens jovens que buscam seu lugar no mundo, querem se conhecer, conhecer os corpos e mergulhar no processo de criação artística como forma de se autodescobrirem. É curioso vermos um filme como Phoenix num festival tão prestigioso como o de Roterdã. O filme tem uma estrutura de baixíssimo orçamento, realizado de forma precária entre o diretor e seus amigos próximos, como o mais típico cinema de garagem, parecendo mais um simples experimento em que amigos jovens estão descobrindo o cinema como forma de expressão. Ao mesmo tempo, há um tom estranho no filme, várias modulações. Algumas vezes legendas (inseridas de forma até meio tosca) servem como diálogos entre os personagens, quase como intertítulos de um filme silencioso. Os personagens são meio andróginos, com uma sexualidade ambígua. Ao mesmo tempo, é um filme comportado, em que o sexo nunca é frontalmente encenado no filme. Phoenix é um filme jovem não apenas pela idade dos personagens, mas porque não existe passado ou futuro, apenas o presente, apenas um desejo tímido de fazer alguma coisa que não se sabe muito bem o que é. Não existem adultos no filme; não há propriamente um projeto para a vida ou para o cinema. Mas decerto há filmes jovens bons ou ruins rs. Ou talvez isso não importe tanto para o Festival: o que mais importa é apresentar um panorama de possibilidades para o cinema hoje, mesmo que essas possibilidades não sejam bem exploradas ou desenvolvidas. Ou causar um certo impacto pelo estranhamento. De todo modo, confesso que reina a sensação: o que diabos um filme como esse está fazendo num festival como o de Roterdã?
FIM
P.S. – Somente depois de terminar esta cobertura, me lembro que vi também um punhado de curtas, e que o festival também tem sessões incríveis de tesouros do cinema realizados há décadas atrás e que não foram devidamente reconhecidos – algo que me fascina profundamente, esse tom revisionista da história do cinema. Entre esses filmes, destaco um incrível curta-metragem de animação na Alemanha Oriental em 1967 intitulado Hands Up Mr. Rasnichi, de Hal Clay e Florenz Fuchs von Nordhoff. No entanto, faltam-me palavras para analisar esse curta. É um exercício delirante envolvendo crítica, poder e criação. Numa sala de exposições, um artista recebe convidados diversos e têm que apertar as suas mãos. De repente, o universo do quadro exposto o puxa para dentro da criação e o filme passa a ter uma estrutura delirante. É uma animação surrealista realizada em pleno regime comunista na Alemanha na década de 1960. Extremamente provocativo mas ao mesmo tempo absolutamente libertário. Fico também pensando como o cinema de animação é ainda pouco estudado, pouco reconhecido em sua contribuição artística. Espero que mais pessoas possam ter acesso a esse incrível Hands Up Mr. Rasnichi! Nada mais típico para encerrar minha cobertura em pleno vac-cine lag com esse filme surrealista dos anos 1960. Viva o cinema e vida o IFFR! Enquanto sobrevivemos, vamos resistindo! BAN-ZAI!!!
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