10º Olhar (2021) – Conferência
Redenção impossível.
Por Ivonete Pinto | 10.10.2021 (domingo)
Conferência (Konferentsiya, Rússia, Estônia, Reino Unido, Itália, 2020) é um filme sobre o qual não é possível escrever logo após assisti-lo. O peso da culpa da personagem central parece cair sobre nós.
Mais do que um soco no estômago, a imagem que melhor se aproxima simbolicamente da sensação é a de uma porta batendo na sua cara. É muito perturbador. E o que perturba não é sabermos que se trata de um episódio que de fato aconteceu e que as fraturas provocadas podem ter sido ainda piores, mas o fato de incluir um elemento dramático universal: a culpa.
Um longo plano de abertura, câmara fixa, nos introduz ao clima do filme. Uma mulher passa um aspirador de pó entre as fileiras da plateia de um teatro em um plano, em tese, maior do que o necessário. Mas este tempo estendido e o final do filme farão sentido a quem se dispuser a acompanhar as 2 horas e 15 minutos de projeção.
Através de depoimentos e da encenação de que acontece no núcleo principal, Conferência se apresenta como uma espécie de ficção híbrida a propósito do que foi conhecido como a crise dos reféns no teatro Dubrovka, em Moscou. Em outubro de 2002, durante o espetáculo musical, o teatro foi tomado por um grupo de revoltosos chechenos (também conhecidos como terroristas, com sentido) , que exigiam a desocupação militar russa na república separatista da Chechênia. A ação durou três dias. Entre os 850 reféns e os 42 chechenos, morrem mais de 170 pessoas.
O filme de Ivan Tverdovskiy não detalha números, mas basta uma pesquisada para vermos que eles são desencontrados. Fontes dão como entre 170 e 274 mortes, sendo 40 dos próprios insurgentes. É preciso considerar o agravante da situação: a polícia russa, por ordem direta de Putin, invade o teatro jogando gás, um gás que quando não matou na hora, afetou o organismo dos sobreviventes levando-os à morte tempos depois.
Claro está que o dado numérico passa a ser uma abstração em meio ao drama. E parece que russos estão acostumados com tragédias bélicas. Sem falar em tudo o que aconteceu na Segunda Guerra Mundial e na Revolução Soviética (crime de Stalin incluídos), apenas na era Putin, que já dura mais de 20 anos, há vários conflitos. Lembrando que dois anos depois deste episódio do teatro, o massacre na em uma escola de Beslan vitimou mais de 300 pessoas, a maioria crianças.
Porém “estar acostumado” é uma impossibilidade quando indivíduos são atingidos para além dos números. E é nisto que Conferência se detém ao colocar em primeiro plano os depoimentos e o segmento ficcional. Nos faz lembrar de Shoah, a propósito do qual o diretor defendia que era impossível dramatizar o Holocausto. Impossível transformar em imagem a gravidade do que aconteceu ali. O jovem diretor Ivan Tverdovskiy (Podbrosy, 2018) parece entender isto e se ocupa com os depoimentos que acontecem no próprio teatro 17 anos depois, quando o luto é reelaborado. Acontece que a opção por fazer um evento no próprio teatro é também uma crítica ao que fizeram as autoridades russas, que levaram os sobreviventes para um ato memorialístico. No filme, quem tem a iniciativa é alguém que está longe de conseguir elaborar suas perdas.
A situação ficcional criada com a personagem de Natasha ( Natalya Pavlenkova ) e sua filha Galya (Kseniya Zueva) é o cerne do filme. Ambas reféns no episódio, a mãe carregará uma culpa que só no final saberemos a razão. Este plot acaba sendo tão poderosos que esquecemos o maior ato de violência ocorrido, que foi a invasão da polícia. Na verdade, o filme toca de raspão nesta informação. Resulta, desta forma, em um gesto político, pois prefere apostar num drama pessoal no que na decisão desastrada e violenta de Vladimir Putin em sua primeira crise como presidente. Claro está que seria outro filme e não nos cabe “fazer outro filme”. Mas este é um tema que provavelmente rende debates acalorados na Rússia, mesmo que sob a vigília censora do governo. A nós, espectadores de um distante país, resta pensar na tragédia familiar e individual de um contexto que não entendemos muito bem e que o próprio tempo ajudou a apagar da memória. Se em relação a Estilhaços, o filme argentino desta edição do Olhar de Cinema, já não sabíamos nada do que aconteceu, mais ainda um evento geograficamente tão distante.
Para quem se interessa pela história russa, pela geopolítica local, vale citar que os chechenos são muçulmanos em sua maioria e que a Rússia cultiva um cristianismo ortodoxo. A personagem Natasha faz estre comentário ao ser construída como uma mulher casada que após o episódio abandona a família, vira monja em um distante monastério, só voltando para preparar a noite da “conferência” com os reféns.
Ivan Tverdovskiy não se preocupa em ser didático, e elementos como as muitas referências ao shahid (mártir), não são explicadas, e as em legendas em português tampouco traduz.
Outro aspecto que pode causar estranheza é o grau de capitalismo selvagem que perpassa o roteiro. O interesse comercial sempre fura as cenas para dizer o quanto a Rússia é dominada pela economia de mercado e o quanto isto desumaniza as relações.
As cobranças do aluguel do teatro para rememorar a chacina (afinal cometida pelo estado, pela polícia russa) é um acinte, assim como a interrupção do guarda que manda os reféns embora. A violência do gesto, que é da encenação, colaborada para o efeito indigesto mencionado no início do texto.
Russos, sem o risco de cairmos em essencialíssimos, são intensos. Que nos digam seus escritores, sua história de luta e sobrevivência. Natasha, a personagem central, com sua dor imensa, entra para o panteão das heroínas perturbadas da dramaturgia russa. Ela tem um segredo, que será revela quase ao final e que explica o tratamento ríspido que recebe da filha. Um segredo que será revelado somente quase ao final dos inúmeros planos-sequência que tira o máximo dos atores. A atriz Natalya Pavlenkova (Zoology, 2016) é esplêndida. Como viver com culpa de ter feito o que fez e ter sobrevivido?
Ver o filme, a partir de uma chave religiosa, muito mais profunda do que a política, ajuda a pensar na figura do shahid, do mártir presente no islamismo e no cristianismo raiz. Afinal, a monja Natasha tem motivos para o martírio.
N. E.: Conferência pode ser conferido na plataforma do festival nesta quarta-feira (13), ao preço de R$ 5 – clique aqui
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