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Festivais

10º Olhar (2021) – O Dia da Posse

Algo acontece com este cinema calibrado de Allan Ribeiro, que nos apresenta um Brasil não idealizado.

Por Ivonete Pinto | 07.10.2021 (quinta-feira)

Graças à pandemia, todos podem ser Panahi e fazer o seu Isto não é um filme. Allan Ribeiro é um deles. Por que ele abre um festival importante como o Olhar de Cinema?

Alunos de audiovisual de primeiro semestre costumam trazer questões que são colocadas pelo protagonista Brendo Washington em O dia da posse: o que é um filme experimental? É isto um filme? É cinema expandido?

Em termos formais, O dia da posse escancara o dispositivo, bem de acordo com a estética do confinamento. Nela, o filme vai se construindo em frente ao espectador, como se estivéssemos no pequeno apartamento, encarcerados com os dois personagens, esperando a pandemia passar. Exceto que não estamos com o diretor antes que ele ligue a câmera, quando  propõe a encenação a Brendo sobre o que vai filmar. Nem quando ele escolhe as imagens que irá manter no corte final. Nesta perspectiva, é um filme como outro qualquer.

Assim, o dispositivo tem menor importância e nos detemos nos personagens, que conversam sobre seus universos. Em uma das falas iniciais, o companheiro/amigo de Allan Ribeiro, lembra de como descobriu, quando criança, que era pobre. A singela revelação vale um tratado sociológico.

As conversas com os familiares de Ribeiro via whatsapp, os respiros com imagens do corredor do edifício, os cafés, a preparação dos bolos, tudo fica no entorno do principal, que são os pensamentos do estudante de Direito e de Medicina (sic) Brendo.

Vivemos uma saturação de imagens de claustro (ainda antes da pandemia). Saturação de exibição de vidas privadas. Mas há algo neste novo Allan Ribeiro que não cansa. O  Brendo Washington filmado por ele não é grandioso no sentido dramatúrgico, no entanto por alguma razão temos prazer em ouvir seus raciocínios às vezes engraçados, às vezes sérios e reflexivos, muitas vezes indicando uma personalidade mitômana. Tanto quer participar do big brother, quanto ser presidente da república. Como ele se vê, como ele vê o mundo.  Pensar no perfil de alguém que cursa Direito e Medicina talvez elucide um pouco a pessoa. E por que Brendo quer ser presidente da república? Parece um enxerto, algo inverossímil no personagem de espírito sagaz e de origem pobre, que faz paralelamente dois cursos difíceis. Ser presidente do Brasil parece demais como projeto de vida. Dois cursos em universidade pública, futuro presidente e apaixonado por reality show. Aí é demais. E não é. Seria Brendo uma projeção de Jean Wyllys?

O hipotético discurso de apresentação para concorrer a uma vaga no big brother é muito convincente, pois Brendo é ator nato. Entre a gravidade de um desejo e a futilidade de outro, é alguém que gostaríamos de ter como amigo e receber dele uma receita de bolo de liquidificador. Um baiano inspirado (um pleonasmo), que veio parar no Rio de Janeiro e expõe seus sonhos com uma verve que nos mantém atentos a suas histórias.

Pode soar aleatório, mas faz lembrar  Hannah Arendt em Origens do totalitarismo, quando observa que “todo ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois em um não perde o contato com o mundo dos meus semelhantes, pois que eles são representados no meu eu, com o qual estabeleço o diálogo do pensamento”.(p. 528)

Pandemia + solidão + Arendt + Brendo. Uma equação que só um festival de cinema em tempos de exceção pode proporcionar.

Allan Ribeiro opera um cinema minimalista, com encenação pouco explícita. Tem experiência em tirar de personagens com quem convive um suco filosófico interessante em registros documentais, adentrando questões sociais. O quebra-cabeças de Sara (2017) é um curta que dialoga diretamente com este longa e que impunha as mesmas dificuldades de ser todo rodado no próprio apartamento. Brendo é a Sara que conseguiu estudar, que tem sonhos e os expressa com desenvoltura.

Naturalmente, estamos falando de propostas não de mercado, que têm  escassa circulação, que exigem um espectador curioso pela linguagem do cinema e, ainda assim, que pode se frustrar com a aridez dramatúrgica. Mas mesmo sem muita paciência para subjetivismos experimentais, é possível perceber que algo acontece com este cinema, pois ele nos apresenta o país. É o Brasil não idealizado pela ficção que vemos no cinema de Allan Ribeiro e isto não é pouco.

Veja o trailer de O DIA DA POSSE aqui

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