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Festivais

45ª Mostra SP (2021) – Na prisão de Evin

Um iraniano perdido nos mistérios

Por Ivonete Pinto | 27.10.2021 (quarta-feira)

Evin é uma temível prisão em Teerã, onde desde antes da Revolução Islâmica de 1979 ficam presos políticos. Mohsen Makhmalbaf e Jafar  Panahi já passaram por lá. As condições são as piores possíveis, tipo calabouço medieval.

Mas no filme assinado pelos estreantes Mohammed Torab-Beig e Mehdi Torab-Beig,  Evin é também o nome do hotel onde supostamente a mãe do ricaço Naser (Mahdi Pakdel), vive isolada.

Amen, uma mulher  transgênero de 19 anos, está em vias de fazer uma cirurgia, patrocinada por Naser. Ela é levada até a mansão dele por uma amiga, por motivos pouco dignos, que só no final conheceremos. A mansão, de cenografia branca, fria e sofisticada é  ao mesmo tempo sinistra. Desesperada, embora desconfiada, Amen vai fazendo o jogo do homem, encorajada pela amiga.

Difícil, a partir daqui, não sucumbir a alguns spoilers, de modos que o leitor pode interromper a leitura. Porém, o principal não será dito. Durante o filme, Amen  não aparece em quadro, ouvimos apenas sua voz (a voz é da atriz  Mehri Kazemi) e o contracampo da amiga e dos outros personagens. Em geral a câmera é subjetiva, em um procedimento a primeira vista ousado.  Para que o mistério? Pode-se fazer várias ilações, entre elas a de respeito do dispositivo pela identidade de gênero da personagem.

Mas a hipótese não parece fazer muito sentido. No Irã, as cirurgias de mudança de sexo são bem aceitas pelo regime. São até incentivadas pelo governo teocrático, que prefere alguém com identidade aparente definida do que a homossexualidade. Soa paradoxal, mas é assim. O que leva inclusive a toda sorte de violência, pois os\as homossexuais, ainda jovens, são pressionados a fazer a cirurgia de redesignação, sem ainda terem certeza do que querem de fato. Socialmente, continuam discriminados de qualquer forma. Não mostrar o rosto e o corpo de Amin, portanto, teria que atender a outras premissas. Desconfia-se que seja apenas para turbinar o mistério, sem consequência maior. Um exercício de estudante de cinema, mesmo que a intenção possa ter sido a da alegoria da invisibilidade das pessoas trans.

Hospedada na casa do homem misterioso, Amen começa a preparação para a cirurgia. A esposa dele, Sima (Ra’na Azadivar),aparece por vezes para questionar o marido, alertando a moça para que fuja. É ela quem fala de uma filha do casal, Annie, que está supostamente (tudo no filme é suposição) desaparecida. Ela tentou suicídio? Cometeu um crime e  está  presa? A esposa parece ser uma espécie de prisioneira na casa, nunca tendo se convencido de que a mãe de Naser está viva segundo o marido.  Ela confidencia à Amen que gostaria de processá-lo, mas ele teria “amigos no tribunal”. Enquanto isto, Amen está literalmente presa na casa, não ficando nem mesmo com seu celular.

Cena de “Na Prisão de Evin”

Ou seja, temos aqui ingredientes de filme de suspense, que se encaminha para o horror. Isto também porque Naser  dá  uns sucos estranhos à Amen, além de remédios especiais que a fazem ter alucinações. Um experimento científico como em Corra! (Jordan Peele, 2017), talvez. Ou  a série Nove desconhecidos, com Nicole Kidman. Também lembra o Pedro Almodovar de A pele que habito (2011). Para piorar a salada de referências, Amen teria sido escolhida por ter a mesma voz da filha Annie e o  psiquiatra convocado para ajudá-la na transição parece saído de O bebê de Rosemary (Polansky, 1968).

A cirurgia, o leitor já deve ter imaginado, tem um objetivo macabro. Mas fiquemos por aqui para não virar spoiler assumido.

O mesmo enredo, sem os excessos de clichês, poderia ser filmado por um Asghar Farhadi, mas aqui é um amontoado de incógnitas que rebaixam Na prisão de Evin a filme B. No Irã, poderá ser liberado pela censura, já que a superfície é de filme de gênero que não compromete o sistema político e o tema da mudança de sexo, não é tabu por lá.

É interessante que a Mostra traga um iraniano como este, sem crianças, sem cenários rurais, sem mensagens edificantes e com um tema de fundo pouco usual na ficção iraniana. De toda forma, é um exemplar de um cinema de mercado daquele país, que amplia assim a experiência de cinefilia dos frequentadores da Mostra.

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