45ª Mostra SP (2021) – O Herói
Com roteiro primoroso, Farhadi se supera
Por Ivonete Pinto | 28.10.2021 (quinta-feira)
Será preciso ver O herói novamente. Esta foi a primeira impressão quando acabou o filme de Asghar Farhadi e não porque ele seja complicado demais, mas porque há uma situação específica que tem dividido opiniões e somente uma segunda visada poderá desfazer a dúvida. Em respeito ao leitor, a situação não será citada.
O que é possível dizer por ora é que se trata do melhor Farhadi, cineasta que, admite-se, nunca mereceu maior devoção, pois seus filmes investiam tudo em sentidos paralelos. A procura de Elly (2009) A separação (2011) e O apartamento (2016), são bons filmes, talhados para dizerem coisas que não estão na tela e com isto dar aquela piscadela aos detratores do regime iraniano, porém nunca indo de maneira mais contundente às críticas. Fazia das metáforas um em cima do muro, sem assumir posições, mesmo quando se aventurou a filmar na França e na Espanha depois do reconhecimento conquistado com os oscarizados A separação e O apartamento.
Parece que Farhadi em O herói encontrou uma forma de se afastar de universos ficcionais limitados ao “estou mostrando isto, mas quero dizer outra coisa” ao sair da costumeira Teerã para cidade de Shiraz. Abre o filme com trabalhadores recuperando áreas do sítio arqueológico Persépolis, a milenar cidade descoberta por alemães há cerca de 100 anos. Não mostra as estátuas gigantescas, preferindo desviar a câmera para espaços menos conhecidos. Como se alguém filmasse no Rio de Janeiro fugindo das paisagens turísticas e icônicas. Já no cenário, o diretor leva o espectador para lugares não óbvios da trama e nos diz que a verdade não está onde aparenta estar. Pode estar fora do quadro.
Em O herói, título que mantém a ironia do original (Ghahreman), Farhadi vai fundo no quão complexa é a honestidade. Ou melhor, chama a atenção para as inúmeras camadas que pode haver na honestidade de uma pessoa.
Rahim (Amir Jadidi) ganha dois dias de licença para levantar o dinheiro necessário para pagar uma dívida porque seu negócio não deu certo e ele foi preso por ter tomado dinheiro de agiotas, obrigando que seu fiador, o parente Bahram (Mohsen Tanabandeh) tivesse que pagar a dívida e sacrificar o dote da filha (Sarina Farhadi, filha do diretor). Bahran, por conta disto, faz com que Rahin seja preso. O “vilão” não aceita receber apenas parte do dinheiro e então tem início o teor mais complicado da história: a namorada Farkhondeh (Sarah Goldoust) encontra uma bolsa de mulher próximo a uma parada de ônibus, contendo 17 moedas de ouro que poderão cobrir boa parte da dívida.
Após não conseguirem o valor justo pela venda com um comerciante de ouro, decidem divulgar que estão à procura da mulher que perdeu a bolsa e devolver as moedas. O plano dá certo, pois o gesto é visto pelos diretores da prisão como algo heroico, porque o dinheiro poderia significar sua soltura. A notícia se espalha e a imprensa trata de erigir o pedestal que faltava para Rahin cair nas graças de todos, incluindo uma associação filantrópica que arrecada mais dinheiro.
Há outros meandros no enredo. Rahin é separado da esposa, cujo irmão vem a ser seu fiador. O filho adolescente, que possui uma dificuldade de fala, vive com a irmã e o cunhado de Rahin. É a irmã quem entrega a bolsa para a suposta dona. Quando a história armada por Rahin e a namorada faz água, a mulher das moedas desaparece e ele não consegue provar à sociedade que devolveu as moedas, nem ao menos que a história é verídica.
Tudo isto é contado na perspectiva de que Rahin é um homem decente, apenas viu-se envolvido na situação da dívida. O ator Amir Jadidi constrói um personagem carismático. Bonito, gentil, sempre sorridente, a namorada é apaixonadíssima por ele, a irmã e o cunhado o ajudam porque ele merece. Mas e o “malvado”? Em um esquema maniqueísta, teríamos alguém desumano, incapaz de ao menos parcelar a dívida. É onde o roteiro mostra sua força, engendrando mais camadas a este homem que foi o fiador da dívida de Rahin. Também o ponto de vista dos diretores da prisão, que veem-se prejudicados por terem acreditado nele e agora a imprensa desmonta a versão do herói. Por traz da ajuda das autoridades, há um interesse escuso para parecerem honrados.
Quando Rahin vira celebridade, sua vida se transforma, sai da prisão, consegue emprego, mas basta começarem os boatos na internet questionando sua história para o outro lado de cada um dos personagens vir à tona.
Se Farhadi ganhar o Oscar novamente não será surpresa. É muito superior ao A separação e O apartamento, com os quais bisou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, guindando o diretor a, justamente, herói no Irã.
Mais que um thriller, O herói é um drama. E é menos sobre um homem atrapalhado que de herói vira bandido, e mais sobre uma sociedade com uma atração patológica por gestos heroicos. Evidente que um filme de pouco mais de duas horas não consegue olhar para todas as esferas. Mas certamente a imprensa, se o roteiro de Farhadi dedicasse mais tempo a ela, teria seu papel aprofundado. Não para culpabilizá-la simplesmente por viver erigindo pseudo-heróis, mas porque isto gera uma reflexão incômoda para todos nós que consumimos notícias. Seja da mídia tradicional, ou das redes sociais.
E neste sentido o Irã de Farhadi não fica restrito às questões envolvendo o regime dos aiatolás e toda sorte de exotismos que vem dali. A história de Rahin por mais intrincada e um tanto mirabolante que seja, podia acontecer em qualquer país fragilizado, qualquer país que depende de exemplos inspiradores de dignidade. Por isto, o discurso do antípoda de Rahin, Bahran, adquire importância no frigir dos ovos. E a maneira como o roteiro desenvolve este personagem é um presente à inteligência do público. Leva-o para um lado, para mais adiante mostrar (sutilmente) ao espectador que seu julgamento pode ter sido precipitado e que talvez não lhe caiba a capa da usura.
Frisemos que o roteiro é realmente o responsável pela discussão moral em torno do episódio. Meias verdades são mentiras? Não existe claro escuro neste filme. Naturalmente, há uma dimensão política nas questões morais exploradas, porém ela transcende as fronteiras persas, tendo ressonância em outras paragens. Assim, sendo universal, Asghar Farhadi fala do Irã profundo, que começou ainda antes de Dario e Xerxes.
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