45º MostraSP (2021) – O Compromisso de Hasan
O cinema turco e a moral de Hasan
Por Ivonete Pinto | 22.10.2021 (sexta-feira)
Ano após ano, a Turquia vem demonstrando que não é apenas um celeiro de melodramas destrambelhados, onde o exagero é a principal marca. De fato, o país também sempre produziu o chamado filme de arte, no qual se destacavam as preocupações sociais em registros realistas, como a obra de Yilmaz Güney (Zavallilar, 1975). Nas gerações mais recentes, tributárias a Güney, o nome de Nuri Bilge Ceylan é uma das principais referências e é seu cinema que pode ser invocado quanto a O Compromisso de Hasan (Baglilik Hasan, 2021).
Dirigido por Semih Kaplanoglu, trata-se de um conto moral que denuncia a hipocrisia de uma família de proprietários rurais, a partir de pequenas situações do cotidiano que vão se avolumando e resultam num quadro nada lisonjeiro de uma espécie de turco médio: trabalhador, religioso, dedicado à família, que acha que faz o bem. Por tabela, temos também o quadro de um país e suas mazelas ligadas à corrupção e aos danos à natureza.
O Compromisso de Hasan abre com imagens impactantes, de um cenário do campo, com uma família descansando à sombra de uma frondosa árvore, num equilíbrio perfeito com a natureza.
Na sequência seguinte, Hasan (Umut Karadag) pulveriza um pomar de maçãs com um pesticida tão forte que bichos começam a aparecer mortos perto da plantação. A agressão à natureza é um dos temas do filme, com seu tempo marcado pelo andar de uma tartaruga. A tartaruga que foge em direção oposta à fazenda pode ser também uma metáfora para o que acontece com Hasan.
Num primeiro momento, somos apresentados a um homem que trabalha pesado, que trata bem seus funcionários e que se vê prejudicado e injustiçado. Uma empresa de energia elétrica vai instalar uma torre e um transformador no meio de sua plantação de tomates e não há jeito de convencer o responsável pelo projeto a transferir a obra para uma área vizinha, sem plantação alguma. A menos que ele conheça uma pessoa importante, um juiz aposentado, mas ainda muito influente. Os favores que já recebeu do juiz por conta da herança da própria terra disputada com o irmão e os pequenos favores que presta ao homem são largados aos poucos, sempre de modo discreto.
Assim, o filme nos traz uma complexidade para a análise do personagem central, Hasan, estendida a toda trama. O espectador tem maior dificuldade de julgar Hasan como vítima da iniciativa da empresa de energia, pois vamos identificando aos poucos que seus métodos para resolver problemas podem ser questionados.
Também o papel da mulher na sociedade islâmica pode gerar dúvida por conta de uma ideia preestabelecida. Na Turquia, as mulheres podem não ter maiores direitos civis, seguramente sofrem discriminação e violência de gênero, mas ostentam um grande poder no âmbito familiar. Emine (Filiz Bozok), a esposa de Hasan, é quem põe na cabeça dele que é preciso comprar as terras do vizinho endividado, que perderá tudo para o banco. Como Hasan convence o vizinho a vender as terras por um valor irrisório é um dos pontos altos do filme, através de um diálogo pleno de sutilezas. É quando observamos as filigranas de um roteiro absolutamente bem arquitetado. Também a cena envolvendo uma colcha encomendada a uma mulher pobre e de como a esposa de Hasan quer levar vantagem na compra, se transforma em uma lição de economia doméstica capitalista. Em outro sentido, a mesma cena é um primor ao construir a reação da mulher pobre, de como a altivez pode prevalecer diante da humilhação. Ela remete muito claramente a algumas sequências de Sono de Inverno (Kis Uykusu , 2014), de Nuri Bilge Ceylan. Quem viu também este filme, por certo vai se lembrar do conflito do proprietário e seu humilde, mas orgulhoso inquilino.
Em ambos filmes, os gestos de bondade na prática são hipocrisia de classe. E Kaplanoglu, que igualmente assina roteiro e produção de O Compromisso de Hasan, articula tudo num crescendo, trazendo as ambivalências de todos personagens. Vale insistir: é uma aula de roteiro e direção. E de como trabalhar as lacunas e os tempos mortos, fetiche de um certo cinema contemporâneo, que poucos realizadores sabem usar.
Haveria ainda muitos aspectos do filme a serem analisados, pois que em suas quase duas horas e meia de duração apresenta vários subtemas. A viagem do casal para fazer a Hajj, a peregrinação à Meca, por exemplo, reforça mais facetas dos personagens, todas de ordem moral. Também é da ordem da ética a relação de Hasan com os agrotóxicos, e mais do que isto, de quem fabrica os pesticidas: os alemães, os mesmos que não compram os produtos de Hasan porque ele usa… pesticidas.
O compromisso de Hasan, afinal, pode ser com Alá, mas não há como se purificar antes da Hajj.
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