45º MostraSP (2021) Sr. Bachmann e Seus Alunos
Disciplina e liberdade
Por Ivonete Pinto | 24.10.2021 (domingo)
Ter boa parte do mundo em um único espaço é bem comum em aeroportos. Já em salas de aula, só mesmo em países que abraçam a imigração como uma política de estado. É o caso da Alemanha, de onde vem Sr. Bachmann e seus alunos (Herr Bachmann und seine Klasse, 2021), de Maria Speth.
Bulgária, Turquia, Rússia, Romênia, Itália, Cazaquistão, Marrocos e até o Brasil são alguns dos países de origem dos estudantes da escola Georg Büchner. Fosse um filme de ficção, pareceria forçado, mas é o cenário deste documentário que tem como vértice o professor Dieter Bachmann Ele mesmo, cujo avô era de origem polonesa e precisou mudar de nome por circunstâncias nazistas, tem seu DNA multicultural.
A abordagem e os procedimentos de linguagem são similares aos adotados pelo francês Ser e ter (Nicolas Philibert, 2004), como o uso da câmera observativa, a figura de um professor carismático e com métodos pedagógicos alternativos, e o emprego de tempos mortos. Mas se nesta produção realizada há quase duas décadas, os planos contemplativos tinham a função de indicar a passagem das estações do ano e o fechamento de um ciclo, no documentário alemão eles são um recurso narrativo para informar mais sobre os personagens adolescentes e seus familiares e, principalmente, lançar luzes sobre a cidade de Stadtallendorf onde fica a escola. Com duração de 3h40min, são respiros importantes, ao mesmo tempo tornam a experiência mais difícil. A diretora Speth parece ter demasiado apego ao material captado, sendo que muitas situações são apenas reiterativas. Ela valoriza o processo, encontrando na montagem o próprio sentido do filme, porém a duração excessiva não se justifica.
A maior parte das cenas tem o propósito de demonstrar a proposta pedagógica da escola, centralizada especialmente na turma do professor do título. Ele ministra várias disciplinas, como música, matemática e alemão, havendo uma interseccionalidade entre todas. Todos os temas acabam convergindo para questões identitárias, onde é reforçada, por exemplo, a noção de se sentir em casa. Na verdade, os alunos questionam esta noção, já que o fato de morar com todos seus familiares (este seria um parâmetro) nem sempre funciona. Questões de pertencimento permeiam o filme, como no memorável Entre os muros da escola (Laurent Cantet, 2008). Nem poderia ser diferente: boa parte dos adolescentes não dominam o alemão, pois não nasceram lá, são imigrantes de primeira geração.
O professor já com mais de 60 anos tem pinta de roqueiro aposentado. Tira proveito dos dons artísticos para ser uma espécie de líder de banda nas várias cenas envolvendo música. Bachmann foi um rebelde e compreende muito bem os conflitos de seus alunos, distribuindo empatia de uma forma comovente. E ele vai fundo para conseguir esta aproximação. Em uma sequência, a câmera adentra o momento da reza em uma mesquita para acompanhar o professor (que não é muçulmano). A questão religiosa é bastante presente no filme, com pelo menos uma aluna cobrindo os cabelos com o lenço e sendo o mote para uma série de debates.
A disciplina, talvez, seja algo que nós brasileiros observamos com mais atenção. Ela soa excessiva por aqui: ninguém pode falar sem levantar a mão e pedir para falar. Regras são regras. Mas o cumprimento às normas estabelecidas não elimina as risadas, a liberdade de expressão e o clima de afeto, tendo a hierarquia na medida certa. Com ela, é possível perceber como o professor consegue fazer a turma ficar em silêncio pelo tempo que ele determina. Uma das tarefas, afinal, não pode acontecer em meio ao barulho dos hormônios em polvorosa: é o momento de se concentrar na leitura (lembrando que o nome da escola homenageia um dos grandes escritores alemães, Georg Büchner, autor de Woyzeck). A sequência que trabalha a importância da leitura funciona como um sinal de quanto, no Brasil, cada vez mais nos afastamos desta prática. Estamos perdendo muita coisa.
Há inúmeras razões para este filme ser visto. Praticamente todos os temas desenvolvidos na sala de aula são interessantes. E pelo menos o interesse cultural deve levar a um número expressivo de espectadores, apesar da metragem. Aprendemos como Stadtallendorf foi importante centro de produção de armamento à época do nazismo. Aprendemos porque há tantos turcos na Alemanha. E aprendemos que é possível ficar algumas horas sem celular.
Desde seu lançamento no Festival de Berlin este ano, a recepção ao filme tem sido promissora. Tomara que o sucesso não leve o professor Dieter Bachmann pelo mesmo caminho do professor de Ser e ter, ou seja, que não venha a processar a produção do documentário exigindo direitos nos lucros. Contrato é contrato.
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