Chapaev
O filme controverso do controverso Realismo Socialista
Por Humberto Silva | 11.10.2021 (segunda-feira)
A cinematografia russa é uma das mais importantes da história do cinema (e antes de avançar um destaque: da revolução de 1917 até a derrocada do comunismo no início da década de 1990, o “cinema russo” se identifica como “cinema soviético”, ainda que diretores representativos não tenham nascido necessariamente na Rússia). Ora, nessas frequentes e midiáticas publicações de listas de “melhores do cinema”, como as da Sight & Sound, muitos virariam as costas para sua seriedade se entre os dez “maiores” diretores não houvesse lugar para Sergei Eisenstein (que era letão) e Andrei Tarkovsky (este sim, russo). O contexto, as tensões e polarizações ideológicas da Guerra Fria, entretanto, fez que o cinema russo (e/ou soviético) ficasse por aqui confinado praticamente ao mundo de cinéfilos que podiam vê-lo, já no processo de abertura política em 1979, em aguardadas sessões de cineclubes (novamente um destaque antes de avançar: assim vi parcela dessa cinematografia nos anos de 1980, no Lasar Segall). De modo geral, de qualquer forma, mesmo com o fim da Guerra Fria o cinema russo (e/ou soviético) por aqui ficou confinado a algumas figuras carimbadas. Entre os nomes mais recentes, há pouco circulou entre nós Andrei Zvyagintsev, bem recebido nos nichos já conhecidos.
Vale registrar que no “tempo dos DVDs” a Continental Home Vídeo lançou a coleção Cinema Revolucionário Soviético, com destaque para os alguns dos filmes mais aclamados. Uma oportunidade para o cinéfilo ver em casa A mãe (1924), de Vsevolod Pudovkin, ou Eu sou Cuba (1964), de Mikhail Kalatozov. A se registrar, por fim, essa sim de grande fôlego e quem sabe na contramão dos tempos, a inciativa do CPC-UMES, que pôs à disposição do público, em DVD, mais de 50 títulos de filmes russos e soviéticos. Além dos DVDs, a CPC-UMES realiza anualmente desde 2014 a Mostra Mosfilm e promove debates, com participação do importante historiador do cinema russo João Lanari, autor de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo, 2019), e da jornalista Maria do Rosário Caetano, entusiasmada por essa cinematografia. A iniciativa do CPC-UMES cobre um amplo leque do cinema russo e/ou soviético. Assim sendo, já trouxe ao público algumas das realizações de um dos períodos mais controversos, o do Realismo Socialista. Em DVD pode-se ver, de Mikhail Romm, Lênin em outubro (1937), Lênin em 1918 (1939) e quem sabe surpreendente um musical Volga, Volga (1938). Mas, infelizmente, não se pode ver ainda Chapaev (1934), dos irmãos Sergei e Georgi Vasyliev (há uma versão esgotada da Colecione Clássicos), um marco do Realismo Socialista, que fez, conforme dados otimistas, 50 milhões de espectadores na Rússia. Produzido pela Lenfilm, o CPC-UMES está tendo dificuldades com a cessão de direitos.
O que passa à história com a etiqueta de Realismo Socialista é o conjunto de orientações para a produção artística à medida que Stalin se consolidou no poder, no início da década de 1930, e que foram implementadas por Andrei Jdanov. Nesse sentido, do início dos anos de 1930 até o “discurso secreto” de Nikita Khrushchov, no XX Congresso do Partido, no qual ele denunciou os expurgos de Stalin, a arte soviética foi profundamente marcada pelo Realismo Socialista, também conhecido como jdanovismo. De modo geral, a produção artística ficava exposta a um controle no qual não podia expressar qualquer contrariedade ao regime (ou o Partido), assim como despertar sentimentos que dessem conotação burguesa ou enfatizassem veleidades individualistas. A arte devia mostrar o povo em sua autenticidade e na luta para a construção de uma sociedade comunista, exibir as conquistas advindas com a revolução e glorificar personagens célebres que ergueram o comunismo. Sob esse aspecto, o Realismo Socialista se afastava das premissas dos anos iniciais da revolução, que estimulava a produção artística em consonância com as vanguardas. Estas, por sua vez, passaram a ser vistas como caprichos burgueses.
À medida que o Realismo Socialista se impôs, a obra de artistas e escritores que participaram ativamente da revolução e eram afinados com as vanguardas foi censurada; eles tiveram seus projetos abortados, adulterados (depois de Linha geral, de 1929, Eisenstein encontrou muitos obstáculos para filmar e a segunda parte de Ivan, o terrível foi censurada por Stalin, sendo liberada apenas na época do degelo de Khrushchov) e muitos, acusados de traição, foram deportados para a Sibéria ou enfrentaram o pelotão de fuzilamento. Um caso dramático foi o de Vsevolod Meyerhold, um dos mais importantes teóricos de teatro do século XX, fuzilado sob a acusação de traição em 1939. Mas fiquemos no cinema, que para Lênin, na causa comunista, era “a arte mais importante” (implicação da premissa: mais importante pois um poderoso instrumento de propaganda ideológica, e como tal será devidamente utilizado por Stalin), e que depois das inovações construtivistas de Eisenstein passou a ser controlado pelo Partido. É nesse ponto que surge Chapaev, um filme que, quando lançado, foi tomado, em raro editorial do Pravda dedicado à arte, como modelo a ser seguido pelo Realismo Socialista.
CHAPAEV – Vasili Chapaev (1887-1919) foi um soldado que se tornou comandante do Exército Vermelho durante a guerra civil contra o Exército Branco (formado por contrarrevolucionários russos e forças estrangeiras que temiam o comunismo). Seu quartel-general ficava nos montes Urais, na fronteira com o Cazaquistão. De origem camponesa, lutou com o exército russo na Primeira Guerra, mas em 1917 aderiu ao bolchevismo e assim entrou na guerra contra os Brancos. Em 1919, seu quartel-general foi atacado por um grande contingente de forças Brancas; com a derrota iminente, ele tentou uma fuga a nado no rio Ural, onde seu corpo desapareceu e jamais foi encontrado. Com o triunfo bolchevique na Guerra Civil, Chapaev foi celebrado como um dos mais populares heróis do conflito, ainda que não tenha feito parte dos altos escalões militares do exército. Sua fama foi impulsionada pela novela anônima escrita por Dimitri Furmanov em 1923, um comissário do Partido que foi indicado para “supervisionar” sua fidelidade partidária. A novela, dirigida ao grande público, obteve enorme sucesso e foi recebida favoravelmente pelo regime. A realização de Chapaev pelos irmãos Vasyliev foi ordenada pelo próprio Stalin, como uma maneira de difundir sua vida e os feitos lendários de um herói popular. Um herói, pois, informal, autêntico, fiel, rústico e sem interesses intelectuais, mas capaz de entender e pôr em prática os objetivos do Partido.
Indicados para realizar Chapaev, os irmãos Vasyliev (embora creditados como irmãos, de fato eles não tinham parentesco) não tiveram uma carreira exatamente profícua. O grande êxito da dupla foi justamente esse filme. De interesse, ainda sobre a Guerra Civil, eles assinam em 1942 The defence of Tsaritsyn, que narra uma significante vitória bolchevique e no qual Stalin tem presença destacada; em seguida, em 1943, The front, que tem como palco a Segunda Guerra, para os russos a Guerra Patriótica, e o enfrentamento do exército alemão. Todos seguem fielmente a cartilha do Realismo Socialista. Os irmãos Vasyliev, de fato, não se notabilizaram como grandes realizadores e igualmente não foram acossados por Stalin. No terrível contexto de controle imposto pelo jdanovismo, eles passaram incólumes. E Chapaev fica como uma obra que se beneficiou enormemente do poderoso aparato de publicidade que exibia o filme como propaganda dos feitos da revolução. Uma obra feita por encomenda e que hoje poderia interessar porque revela em pinceladas marcantes as características estilísticas do Realismo Socialista em seus propósitos mais pregnantes.
Ocorre que Chapaev revela sutilezas que merecem ser realçadas. Uma delas é sobre o tema do heroísmo. Trata-se de um herói que morre no final; ou seu corpo desaparece na correnteza do rio Ural. Há um duplo sentido na mensagem: o herói é um emblema, mitificado justamente por sua capacidade de sacrifício; ele morre, mas o Partido, e a causa, não morre, pois paira além das circunstâncias. Assim sendo, Chapaev traz à tona um complexo fundo de religiosidade para um regime que lidou com a religião com mãos de ferro. É inegável ponderar que o sacrifício de Chapaev remete à mensagem cristã e o Partido seria o reino do céu. Não é o caso de considerar, nem longinquamente, o quanto de intenção cabe ao que os irmãos Vasyliev tinham em mente. Uma obra, qualquer obra, pode revelar um sentido oculto que escapa a qualquer intenção prévia de seu realizador. Mas é o caso de considerar que Chapaev, um poderoso artefato para propaganda do regime, é igualmente um filme que em sua mensagem subliminar o confronta. Nisso, uma das ironias da arte, e da arte engajada em especial: o potencial de nas entrelinhas mostrar contradições insondáveis. Um filme de conteúdo político, realizado de forma política, para lembrarmos de famosa máxima de J. L. Godard, coloca pra baixo do tapete o que não interessa, mas isso apenas provisoriamente, já que o tapete pode ser levantado a qualquer momento.
Chapaev traz também outra sutileza que vale ser destacada: o confronto entre o próprio Chapaev e Furmanov, o comissário indicado pelo Partido para se certificar de sua fidelidade. O filme, então, expõe de modo didático as diferenças de mundo e de formação entre eles. Furmanov representa literalmente as linhas ortodoxas do regime diante de um personagem cuja característica mais notável é o impulso intuitivo, a percepção de que a ação, a tomada de decisão, não passa pelo pensamento. Furmanov, com isso, sempre sereno e contido, funciona como uma espécie de “pedagogo”. Sem alterar substancialmente seu modo de ser, Chapaev nota como seu mundo é pouco poroso e que lhe faltam elementos para compreender o que se passa além dos montes Urais. Ele não consegue entender, por exemplo, o sentido da I, da II e da III Internacional, quando instigado a se posicionar por um camponês. A presença de Furmanov, plenamente justificada na economia interna da narrativa e no contexto histórico, adensa a complexidade de caráter de Chapaev. Furmanov é bem sucedido como pedagogo, mas isso com o custo subliminar de uma crítica à espontaneidade rústica de Chapaev; por conseguinte, do povo, a quem o filme é destinado, seguindo os propósitos do Realismo Socialista.
Acentuo, ainda, que Chapaev segue a estrutura clássica da narrativa fílmica codificada por Hollywood: o bem contra o mal (mocinhos e bandidos) e a vitória do bem no final, que tem no western o gênero americano por excelência, nas palavras do crítico francês Andre Bazin. Nesse modelo de narrativa, os protagonistas são claramente explicitados de acordo com uma identificação maniqueísta. Não há elementos que perturbem o espectador quanto ao fluxo dos acontecimentos e, portanto, as ações esperadas: generosidade, altruísmo, abnegação, coragem… de um lado; de outro, crueldade, perversidade, covardia, insensibilidade… Seguindo o modelo narrativo hollywoodiano, a trama em Chapaev guarda semelhanças com Forte apache (1948), de John Ford. Como naquele, neste o protagonista, numa referência ao General Custer e a 7ª Cavalaria em batalha contra os Sioux, morre no final.
Há, no entretanto, algo que falta ao filme de Ford e está presente no dos irmãos Vasyliev: o povo (e, antes de ser corrigido por sociólogos de plantão, em sentido lato: não propriamente o conceito, mas um termo retórico para designar a instância que se situa entre os dois lados em contenda). O ponto não é de que o povo estaria necessariamente ausente numa película americana e, em contraste, presente numa soviética. Do mesmo Ford, ele é representado em No tempo das diligências (1939), e apenas como figurante em Lênin em outubro, para ficarmos em paralelos. Em Chapaev, o povo é explicitamente colocado entre os dois lados. Mais, uma sequência de grande poder simbólico mostra como ele é fustigado pelos bolcheviques e pelo Exército Branco. Ao fim, o povo pende para o lado bolchevique, ocorre que, com um dado subliminar, a adesão não se dá sem conflito. Ou seja, em Chapaev, além da estrutura narrativa maniqueísta, há tramas paralelas que dão uma complexidade não esperada num filme no qual houvesse rigidez na configuração do bem e do mal.
Embora seja condizente com as orientações do Realismo Socialista – e efetivamente confirme as palavras entusiasmadas do editorial do Pravda –, Chapaev guarda nuances que o tornam mais complexo do que se pode esperar num primeiro momento. Realizado por encomenda, em razão do enorme sucesso quando lançado, foi bem sucedido como instrumento de propaganda. Com ele, de fato, o sentido da produção cinematográfica na URSS até o degelo na era Khrushchov. Seu enorme sucesso em solo russo, no entretanto, não esconde o que de maneira simplificada podemos chamar de “contradições” num filme de propaganda. As sutilezas aqui realçadas – e há outras que um espectador atento pode notar – mostram como um filme com “conteúdo político e realizado de forma política” pode ir além de eventuais intenções; em decorrência, subliminar e caprichosamente entrar em confronto com suas próprias intenções.
Nisso, assim entendo, a riqueza de uma obra fílmica. Tanto mais quanto mais nos afastamos dela no tempo. A URSS sob Stalin e o Realismo Socialista hoje fazem parte da história. Nessa condição privilegiada pela passagem do tempo, podemos ver Chapaev e valorizá-lo num sentido diferente do da época em que foi realizado. Ao vê-lo podemos aprender algo sobre o caprichoso movimento da história e da produção artística; assim como aprender que a mensagem política em um filme pode transbordar e escorrer por caminhos imprevistos. Para mim, portanto, trata-se de um filme basilar para se discutir os nexos sibilinos entre “arte engajada” e instrumento de propaganda ideológica. Tema caro aos debates intelectuais da época e que mobilizou, entre outros, um filósofo como Jean-Paul Sartre e o crítico Georges Sadoul. Os reflexos desse debate se fazem sentir no Brasil dos anos de 1960, com Glauber Rocha, o Cinema Novo e, numa ironia com as siglas, o CPC capitaneado por Oduvaldo Viana Filho, Leon Hirszman e Carlos Estevam Martins.
Humberto Pereira da Silva é professor de história do cinema na FAAP e na Academia Internacional de Cinema e crítico de cinema. Autor de Glauber Rocha: cinema, estética e revolução (Paco Editorial, 2016) e membro da Abraccine.
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