25º CinePE (2021) – Muribeca
Pranto melancólico de um lugar que hoje só existe no coração
Por Luiz Joaquim | 24.11.2021 (quarta-feira)
Betânia da ACD (Associação Cultural Desportiva) de Jaboatão dos Guararapes (PE), em seu depoimento para o documentário Muribeca (Bra., 2020) – longa-metragem inaugural de ontem (23) no Cineteatro do Parque para o 25º CinePE: Festival do Audiovisual – lembra que, quando criança, gostava de ficar na janela do apartamento onde morava, no Conjunto Habitacional Muribeca, cantando Comentários a respeito de John, de Belchior.
Tal expressão fazia parte de um conjunto de alegrias da menina de uma família pobre, como outras mais de 2.000 famílias, que viriam a residir naquele complexo da Cohab em Jaboatão, inaugurado no início dos anos 1980. “Nunca vi ninguém ir pagar a conta da luz tão feliz como meu pai. Só porque o nome dele estava naquele papel”.
Talvez essa fala de Betânia resolva muito bem um dos sentidos que o documentário de Alcione Bezerra e Camilo Soares propõe como reflexão – sentido reforçado também na apresentação de Alcione ontem, no palco do Parque, ao destacar que alguns locais não são traduzíveis apenas pelo endereço geográfico ou como um conjunto de obras de concreto.
Muribeca, o filme, nesse sentido, resulta mais numa obra a respeito de uma memória da Muribeca e menos sobre a Muribeca em si – sem deixar, óbvio, de também ser um trabalho que apresenta o bairro propriamente (deixando o pragmatismo das contextualizações para os créditos, no final).
No filme, a memória, como foco, e o carinho por algo comunitariamente construído naquele bairro se corporificam na coleção de depoimentos da dúzia de bons personagens que Alcione e Camilo trouxeram para o projeto. Todos guardam uma carga nostálgica de um tempo sedimentado lá atrás, no passado.
Na verdade, a sedimentação do fim daquele período valioso (período que representou toda uma vida para alguns moradores da Muribeca, vale dizer) foi estabelecida judicialmente a partir de um imbróglio que se arrasta ainda hoje. Iniciou no começo dos anos 2000, quando foram detectados problemas estruturais nos prédios do conjunto habitacional para, em 2018/2019, começar a demolição das construções, com a consequente saída das mais de duas mil famílias dali.
Mas a história que interessa a Alcione e Camilo é a que vive na cabeça de seus depoentes. E a dupla de realizadores administra bem o que possuem nas mãos – o que inclui um bom material de arquivo, em vídeo caseiro, feito pelos moradores dalí nos anos 1990/2000.
Ainda que no terço inicial do documentário, ele busque ambientar o espectador no deserto humano em que se tornou hoje o Conjunto Habitual Muribeca e acabe por reincidir numa espécie de sobrecarga de imagens das ruínas dos prédios – tomada agora pela vegetação, e por animais -, Muribeca ganha força na medida em que seus personagens se colocam. E, não por acaso, isso irá acontecer na segunda metade do filme, com as falas mais comoventes/envolventes, como as de Betânia da ACD, do chargista, cartunista e quadrinista Flavão, de Manina Aguiar, e daquele que talvez seja o artista mais emblemático da comunidade, o grande poeta Miró. A propósito, um parêntese para registrar que Miró merece um longa-metragem documental inteiro dedicado a ele.
Na verdade, talvez, uma inversão do uso das imagens – insistindo nas ruínas da Muribeca -, indo para o final do filme, soasse mais eficiente, já que como espectadores estaríamos todos ao lado dos depoentes, condoídos em suas dores e tristezas.
De toda forma, Muribeca encerra bem, com o impacto dramático das escavadeiras demolindo as construções (com um belo trabalho de som enfatizando tal impacto). Não há nada mais eloquente que uma destruição para representar uma dor, e o que o filme procura passar para sua plateia é que, mais forte do que a dor, ou um caminho para tentar superá-la, é o sentido da união em função de um bem coletivo, para o coletivo, cuja experiência do passado reflete o desejo para o futuro.
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