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Reportagens

Cineteatro pede socorro (2004)

Com espaço monumental, o Samuel Campelo não funciona há seis anos (desde 1998).

Por Luiz Joaquim | 14.11.2021 (domingo)

– reportagem originalmente publicada em 10 de novembro de 2004 na capa do caderno Programa do jornal Folha de Pernambuco. Acima, fotografia do Cineteatro em 2004, de autoria de Filipe Falcão.

Manhã de sexta-feira em novembro de 2004. Praça Nossa Senhora do Rosário em Jaboatão dos Guararapes. Sob o barulho estridente de carros de som anunciando o “show imperdível da maior banda brega” estão alguns vendedores ambulantes espalhando seus produtos pela calçada diante do número 510. É um prédio portentoso o qual, no topo, estampa o letreiro “Cineteatro Samuel Campelo”. Este nome carrega em si quase um século da história cultural do município. Mas hoje a casa representa apenas uma construção dominada pela poeira, sujeira e desapreço da população.

Apesar de não funcionar há seis anos, quando projetou Titanic (1998) em sua última sessão, o Cine Samuel Campelo abriga ainda as 850 cadeiras de madeira que compõem a plateia. Quando em atividade, o cinema dispunha de mais 258 lugares no balcão superior, oferecendo um total de 1.108 lugares ao espectador. Para se ter uma ideia de dimensão dessa capacidade basta compará-la com a de uma casa bem popular entre os recifenses, o Cineteatro do Parque, que possui 947 poltronas.

Como numa construção fantasma, o Samuel Campelo ostenta ainda sua impressionante tela com proporção gigante para receber projeção em CinemaScope. Este formato, que através de uma lente anamórfica dá uma visão panorâmica da cena, é facilmente encontrado nas salas de cinema de hoje. Na década de 1950, era um produto de luxo. Naquela época, apenas dois cinemas possuíam tal preciosidade em Pernambuco. Um deles era o Samuel Campelo.

João da Penha, 69 anos, ou “Seu Jóca”, trabalhou nos cine Glória, Moderno, Duarte Coelho e no Coliseu (outro espaço lendário no Estado) e recorda quando em 1961 foi contratado para operar o projetor do Samuel Campelo. Lá ficou até 1976. “Era um sistema sofisticado que pouca gente sabia manusear. Dos filmes em Scope, lembro bastante das reprises que rodei de Ben-Hur (1959) e Os Dez mandamentos (1956)”, conta.

Outro ex-funcionário, Draumiro Lourenço, 65 anos, ou “Seu Míro”, lembra como era luxuoso quando as cortinas abriam automaticamente para exibir o filme em Scope. “Quando o motor quebrou, eu mesmo puxava as cortinas pesadas” recorda o ex-funcionário que já era frequentados assíduo do cinema antes de ali trabalhar. “Foi lá que assisti O Corcunda de Notre Dame (1939), Sansão e Dalila (1949), Sai de baixo (1956)”. De memória, Seu Míro diz que o filme mais procurado de todos os tempos do cinema foi O Ébrio (1946). “A fila dava voltas pelo quarteirão”.

Apesar da existência do Cine Floriano em Jaboatão (hoje transformado numa igreja presbiteriana), não há dúvida que o Cine Samuel Campelo era o único endereço de classe no município para receber obras como Intermezzo: Uma história de amor (1939) com Ingrid Bergman, ou o vencedor de Cannes em 1962 O Pagador de promessas, ou ainda Vidas secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos. A casa dava lugar também a sucessos populares como as diversas chanchadas com Oscarito, Grande Otelo e Anquito.

Dizer que todas essas lembranças são apenas saudosismo tem o mesmo sentido equivocado de afirmar que cultura é algo supérfluo. O produtor Carlos Alberto Pereira, conhecido no meio artístico como Carlota, também pensa assim e é um dos jaboatonense mais preocupados com o destino do Cineteatro. “Não seria surpresa se a casa reabrisse como uma Igreja Universal do Reino de Deus ou uma loja de sapato. Isso seria, no mínimo, lamentável”, reflete Carlota.

Ele completa dizendo: “O espaço é patrimônio público que merece total atenção do governo municipal para evitar que uma tragédia dessas aconteça”. Decidido a não esperar pela ação da prefeitura, o produtor pretende sensibilizar personalidades da cultura em Jaboatão com intenção de promover a reabertura do cinema, transformando o centro antigo da cidade num lugar novamente interessante pela via da arte. “Penso nisso não só por mim, mas por toda uma geração nova que não tem acesso a cinema e teatro em Jaboatão”, concluiu Carlota.

Restauro deve custar R$ 1,5 milhão – Consultado pela reportagem da Folha, o secretário de Cultura e Esporte de Jaboatão dos Guararapes, Marcos Paiva, salientou que é um admirador do Cineteatro Samuel Campelo e que também é sensível contra o mau estado em que se encontra o prédio. Paiva explicou que já existe um projeto para restauração do espaço.

O projeto, orçado em R$ 1,5 milhão, foi desenvolvido ainda na gestão do antigo secretário, Geraldo Melo Filho, e prevê modificações em toda construção arquitetônica, passando pela acústica até a cobertura do prédio. Seguindo a legislação eleitoral, o processo teve de ser paralisado nos três meses antes da eleição e deve permanecer parado nos três meses seguintes.

“Mesmo assim, fui a Brasília conversar com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) levando uma contrapartida da prefeitura com intenção de conseguir apoio federal para o projeto”, adiantou o secretário, que encerrou dizendo-se esperançoso para ver a nova gestão da Prefeitura dando continuidade ao andamento do projeto.

Imagem do Cineteatro Samuel Campelo em 1911. Acervo particular de Gilvan Veloso / Cortesia

Cinema guarda 93 anos de história – O livro Jaboatão de meus avós, escrito pelo falecido descendente de holandeses Van Hoeven Veloso, registra que no dia 6 de agosto de 1911 era inaugurado o prédio no local onde hoje se encontra o Cineteatro Samuel Campelo. Antes de ser demolido para dar lugar a um novo cinema, a casa abrigava espetáculos teatrais e projetava filmes mudos, e depois sonoros, para a sociedade jaboatonense.

Nos anos 1940, um novo prédio começou a ser erguido no mesmo local. Pela memória de Seu Míro, ex-funcionário do cinema, em setembro de 1947 a casa era inaugurada e provocava inveja nos cinemas do Recife pelos seus potentes projetores RCA Victor a carvão e exibindo filmes no formato CinemaScope e Vistavision.

“A gente projetava uma sessão por dia, sempre às 19h45. No domingo eram duas sessões”, lembra Seu Miro. Gilvan Veloso, filho de Van-Hoeven, um dos fundadores do Samuel Campelo, lembra que, quando menino, fazia de tudo para entrar nas matinês que exibiam filmes de bangue-bangue.

O produtor cultural Carlota explica que nos anos 1980, o local passou a ser gerenciado pela prefeitura que alugou o espaço para a Igreja Universal mas, em seguida, os desapropriou por atraso no aluguel. Na primeira metade dos anos 1990, a prefeitura promoveu algumas sessões de cinema, mas sem regularidade, até fechar suas portas em 1998.

*Nota do editor: O Cineteatro Samuel Campelo foi reaberto 11 anos após a publicação original dessa reportagem. Leia matéria de reabertura aqui.

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