Marighella (texto #1)
O catártico “Marighella”
Por Ivonete Pinto | 03.11.2021 (quarta-feira)
Provocou um frisson a notícia de que Wagner Moura dirigiria um filme sobre Carlos Marighella. A palavra em desuso, parece mais adequada do que o termo “expectativa”, pois frisson pressupõe um certo arrepio no cérebro. Em plena era de ressurgimento de grupos obscurantistas, que veem ameaças comunistas atrás de qualquer poste de rua, trazer para as telas a história de um comunista de carteirinha, com patrocínio das leis de incentivo, é de uma coragem marighelliana. Outros filmes sobre o personagem já haviam sido feitos, como o de Silvio Tendler, Marighella: Retrato falado do guerrilheiro (2011) e Marighella, de Isa Grinspum Ferraz (2012), mas em períodos democráticos e em abordagem documental.
Finalizado desde 2019, o Marighella de Wagner Moura, em sua estreia na direção, esperou por momento mais propício, com o arrefecimento da pandemia, para ser lançado no Brasil como se deve, numa sala de cinema. Há, por exemplo, um momento catártico envolvendo o hino nacional (aquele sequestrado pelo grupo que cultua as trevas, como se fosse propriedade privada), que só funciona numa sala cheia de gente. Cheia de gente que se arrepia com a defesa da liberdade política e da justiça social.
Com o perdão da água fria, apesar de seus méritos Marighella não deixa de ser suscetível a questionamentos. O tempo de mais de duas horas e trinta minutos talvez não se justifique; também o tom cambiante, ora demasiado sentimental, ora demasiado romântico, não ajuda. Principalmente pela intervenção de uma trilha sonora vinculada a uma narrativa que subestima a capacidade do espectador de se emocionar no momento que lhe aprouver. Problema que provavelmente só a crítica mais exigente quanto ao uso do som vai se incomodar.
Há questões de fundo, como a heroicização do protagonista e seus companheiros, que igualmente podem ser postas em dúvida. A vida de Marighella, em eventos nem mostrados no filme, de fato é a de um candidato a herói. Militante do Partido Comunista do Brasil, foi preso e torturado já na ditadura Vargas, mais tarde entrou para a guerrilha e passou a vida correndo riscos em nome do que acreditava. Caçado como inimigo “número um”, é assassinado em 1969 pelo Estado (DOPS) estando desarmado, foi anistiado em 2012. Isto é heroico, por definição, mas como estratégia nos dias de hoje, pode mandar um recado errado. Não precisamos de heróis, precisamos de racionalidade. Imagens recentes nas redes sociais, com vovozinhas de verde e amarelo segurando cartazes perguntando por que os miliares não mataram todos, são evidências de que o tema precisa ser enfrentado.
Polêmicas, compreensões tortas, julgamentos de quem não viu e não gostou e fake news irão abundar com este lançamento. O que temos, numa leitura fria, é um filme arrojado em sua estrutura de produção, com elenco – muitos atores, felizmente, de rostos desconhecidos – que imprime veracidade aos fatos narrados. A escolha do cantor e ator Seu Jorge como Marighella, criticada quando anunciada, mostra-se política. O personagem real não era tão preto; era negro, pois que filho de mãe de origem sudanesa e pai italiano. Para o processo de conscientização que todos nós vivemos quanto às questões raciais, é bem-vindo o discurso de Wagner Moura nesta escolha. Um preto escuro que inegavelmente representa parte considerável da nossa população e nos apresenta mais do que um intelectual que resolveu pegar em armas e liderar a luta pelo fim da ditadura militar. Este preto dialoga em sentido transverso com um filme como O que é isto, companheiro? (Bruno Barreto, 1997) e seus militantes guerrilheiros branquinhos. E esta é só mais uma das dimensões de acesso ao Marighella de Moura.
O aspecto da forma do filme, com um grande número de cenas de ação, funciona da maneira mais envolvente possível. Vibra-se nas sequências de assalto, de correria, de tensão. Já como gênero de filme político – ou de denúncia, se preferirmos – as cenas mostrando tortura, tortura com sangue, com pau de arara, com choques, com apetrechos pelos quais os militares e policiais civis tinham fetiche sexual, estão na tela para não deixar ninguém acomodado. Nos lembram de títulos emblemáticos como Pra frente Brasil (Roberto farias, 1982), quando ainda na ditadura, vimos sessão de tortura sendo encenada. Em Marighella as sessões não estão ali para dizer que elas existiram, porque mesmo os negacionistas como as vovozinhas verde-amareladas sabem, mas para dizer que o modus operandi pode voltar de maneira sistemática se depender dos grupos obscurantistas.
Ainda quanto à contribuição ao debate sobre a opção pela luta armada à época, é visível o esforço do roteiro assinado por Moura e Felipe Braga, baseado em livro de Mário Magalhães, em dedicar espaço às relações familiares. Há personagens como o de Adriana Esteves (companheira de Marighella) e de Carla Ribas (mãe da jovem militante Bella), com poucas aparições, mas que dão conta do sofrimento que é ver os que amam entregarem-se à morte certa. Situações-limite que ninguém em sã consciência quer que volte a este País que viveu 21 anos de ditadura e que solapam ideais românticas. A guerrilha armada, assim como a classe operária, não foi ao paraíso.
Mostrar o sofrimento funciona para atenuar a heroicização da luta armada? A pecha de filme comunista, ou todo tipo de paranoia descerebrada, isto sempre vai haver. Mas para quem lê o filme com olhos críticos, há curvas no meio do caminho que nos levam a outros lugares. A figuraça de Marighella, deputado, poeta, leitor voraz desde criança, com textos publicados por Sartre, etc, etc, já teria sido representada em qualquer país com cinematografia preocupada em pensar sua história, sua memória. Calhou de só agora termos esta ficção, pela mão de um ator, o ator que ironicamente foi o capitão Nascimento de José Padilha. Mas aí já começaria uma outra análise, também interessante do ponto de vista dos sentidos que um filme pode ter. Por ora, fiquemos com o aspecto da heroicização que não tem medo de se assumir como tal. Pragmaticamente, o final catártico que no momento faz bem à saúde, pode não se sustentar perante à história do País.
No âmbito do cinema, para uma visão ampliada de quem foi Carlos Marighella, é indicado ver os outros filmes sobre ele. No de Tendler, a faceta do autor do Manual do guerrilheiro urbano é um dado que ganha relevância e proporciona um debate consequente. Em 2021, vale a pena investir nele.
Para ler a crítica de Luiz Joaquim para Marighella, clique aqui.
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