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Críticas

Marighella (texto #2)

“É terror sim!”

Por Luiz Joaquim | 03.11.2021 (quarta-feira)

Não é à toa que o atual governo brasileiro, com a Agência de Cinema (Ancine) agindo em seu nome, vinha tentando impedir o lançamento de Marighella (Bra., 2019), o longa-metragem dirigido por Wagner Moura, que, finalmente, chega aos cinemas do País nesta quinta-feira (4). Além do óbvio fato desta cinebiografia abrir um muito bem dramatizado leque de observações heroicas a respeito do líder guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969), um dos principais líderes da luta armada da década de 1960 assassinado pela ditadura militar, o filme de Wagner já começa com provocações contra o que se vê no Brasil de hoje.

Filmado em 2017, durante o governo golpista de Michel Temer, e lançado mundialmente em fevereiro de 2019, sob aplausos no Festival de Berlim (portanto, já durante o governo Bolsonaro), Marighella, na verdade, abre com textos que sintetizam a razão da tomada do poder pela ditadura militar em 1964, do quão violenta ela foi e de como parte da mídia e da classe média e alta foram coniventes, condescendentes, apoiadoras e, enfim, corresponsáveis pela ascensão de valores conservadores e antissocialistas, tudo com o apoio dos EUA.

Lendo tais textos nas cartelas de abertura do filme, a impressão que se tem é que Marighella está se referindo ao Brasil que passamos a conhecer a partir de 31 de agosto de 2016 até o momento em que escrevemos este texto.

Acontece que nessa adaptação do livro Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo (2012), de Mário Magalhães, o herói foi considerado o ‘Inimigo nº 1’ do Brasil dos militares, com direito a, em determinada sequência, termos o protagonista (na pele de Seu Jorge) olhando para câmera (para nós) para deixar claro que “É terror sim” o que ele vai aplicar contra o então sanguinário sistema de poder do Brasil.

Essa espécie de convocação funciona como um chacoalhar no espectador, principalmente naquele que vive no Brasil nos últimos cinco anos: inerte, quase sonolento sobre o teclado de seus smartphones, e diante de uma espécie de epopeia às avessas em que se tornou a política brasileira a partir de um mito forjado no estrume da humanidade.

Daí a coerência do temor do atual governo brasileiro em ver Marighella chegar à luz do mundo.

FILME – Nesta adaptação cinematográfica, que joga luz sobre os últimos anos do guerrilheiro, Wagner Moura (coautor do roteiro com Felipe Braga) aproveita bastante bem a relação de pai e filho entre Marighella e Carlinhos, dando uma dimensão humana (e, portanto, mais próxima de qualquer espectador) para a lendária figura comumente vista como inquebrável em suas convicções pela luta armada.

Não é por menos que as primeiras imagens do filme trazem o pai Marighella ensinando Carlinhos a boiar no mar, e as últimas palavras ditas no filme são do pai direcionadas ao filho.

Saber dos medos de um homem é saber que ele é um homem e, a certa altura no filme, um repórter francês entrevista Marighella lhe lançando: “Você não tem medo?”, para receber um “Eu não tenho tempo para ter medo”. Mas ele existe, e num dos poucos momentos íntimos que testemunhamos entre o protagonista e a sua amada Clara (Adriana Esteves), isto passa a ser uma certeza para quem acompanha a história.

Adriana Esteves e Seu Jorge em cena de “Marighella”

De qualquer forma, o filme chega nas salas de cinema também como necessário por igualmente chacoalhar o jovem e sonolento espectador (cinematográfico e político) de 2021 por outra questão, que vem a ser: por que alguém arriscaria a própria vida e a vida da família em nome de uma causa social? No enfastiado 2021 de panelas nas janelas, isso é algo quase incompreensível.

Talvez a resposta precisaria de um outro filme, com maior espaço de tempo para diálogos mais verticais. No caso do filme de Wagner, vale dizer que a obra valoriza bastante o que há de ação nessa história. E, ainda que algumas sequências de tiroteio pareçam perder o ritmo em si própria, isso não é um demérito aqui, uma vez que tal situação precisa servir de painel para escancarar o que havia de doentio por parte do governo naquele período.

Não é por menos que uma das sequências mais comoventes do filme não está com Seu Jorge (em excelente performance), mas sim com um outro Jorge. O cearense Jorge Paz (também presente na série da Amazon, Maradona: Conquista de um sonho). Pai de três filhos, seu personagem, também Jorge, é um dos guerrilheiros próximos a Marighella que, a certa altura, precisa fugir da polícia, não por covardia, mas por instinto. E é nessa fuga a pé pelas ruas do Rio de Janeiro que Wagner Moura nos dá uma imagem muito valiosa que, inclusive, remete a uma outra criada pelo seu conterrâneo Glauber Rocha em Deus e o diabo na terra do sol (1964). Tanto lá quanto aqui, temos o sertanejo Manoel e o guerrilheiro Jorge fugindo da morte, do horror.

É também pela performance de Jorge Paz que temos a mais violenta das sequências de Marighella, com seu personagem sob tortura da polícia. Há já quem questiona a plasticidade de tanta violência aqui. Bem… nada mais coerente que esse questionamento num entorpecido 2021.

A cena parece clara em querer destacar aquilo que os sonolentos guerrilheiros de smartphone dos dias de hoje talvez nem consigam imaginar. E o sentido dela existir no filme também parece claro: Fazer com que nunca mais tenhamos que passar por isso. Que não tenhamos de voltar a viver num “tempo onde lutar por seu direito é um defeito que mata”, como bem diz a música Memória de um tempo sem memória, de Gonzaguinha, belamente aproveitada no filme.

Curiosidade – Ainda na primeira meia-hora de filme, vemos uma fuga de Marighella da polícia em que ele procura despistá-la entrando numa sala de cinema. Lá exibe O noivo da girafa (1957), dirigido por Victor Lima e estrelado por Mazaroppi. Até aí tudo bem. Mas quando vemos Marighella acessando o auditório, damos de cara com um erro técnico vulgar que, por isso, incomoda a um olho mais atento. A imagem que se vê na tela do cinema é a da obra “projetada” na proporção errada. Originalmente fotografado para exibir na janela 1,37:1, o que vemos é a imagem na proporção do cinemascope, de 2,35:1, com tudo o que está nela aparecendo de maneira deformada, “esticada”. Uma pena.

Para ler a crítica de Ivonete Pinto para Marighella, clique aqui.

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