31º Cine Ceará (2021) – “5 Casas”
Inventário de perdas em 5 Casas
Por Ivonete Pinto | 02.12.2021 (quinta-feira)
5 Casas, de Bruno Gularte Barreto, traz personagens muito diferentes uns dos outros. Da professora, passando pela freira, ao gay. O que mais dá certo no filme é como o roteiro e a montagem passam de um para outro e como, no conjunto, funcionam como uma só unidade a dar sentido à principal história contada, a da infância de perdas do protagonista.
Bruno Gularte Barreto talvez tenha sido obrigado a adotar o sobrenome de solteira da mãe para não ser confundido com o primogênito do clã dos Barreto. Com o filme e o peso deste “Gularte” que aparece nos documentos da mãe, supomos que a identidade ganhe novos contornos.
E a palavra “ganho”, por sua vez, adquire uma conotação estranha, pois se trata de um inventário de perdas: Bruno começa já situando o espectador quanto à morte da mãe quando ele tinha oito anos de idade. O pai morre cinco anos depois, ambos de câncer. Vamos sabendo aos poucos dos fatos através de fotos e conversas que Bruno tem com as pessoas ligadas a estes fatos.
Como um filme de memória por excelência, esta construção se dá com o uso de fotos e documentos amarelados pelo tempo. Ao estilo de uma colcha de tecidos diferentes que vai aparecendo na tela e formando uma única peça. A memória se decompõe, é reerguida com outros elementos do real, carrega outros sentidos. Não se lembrar da voz dos pais é um sintoma doloroso desta (des)memória. Doloroso, aliás, é um termo usado mais de uma vez pelos personagens, pessoas que o diretor não tem parentesco, mas tem afinidades eletivas (os irmãos do diretor são citados mas não aparecem, no que, imagina-se, tenha sido uma opção narrativa ou mesmo uma negociação familiar para a produção do filme).
Ver em cena a cidade Dom Pedrito, fronteira com o Uruguay, para um gaúcho “da cidade” é algo novo. A paisagem campeira em si não é nova no cinema destas bandas, a questão é “como” mostrar esta paisagem. Bela e deteriorada, mas com força imagética insuspeita, é assim que ela se impõe no filme, principalmente com as ruínas das casas.
Ainda quanto aos elementos da paisagem, um dos aspectos que provavelmente gerem esta força está nos desdobramentos dos temas. Se o câncer que levou seus pais ainda jovens é um tema que vai ganhando espaço com os depoimentos, há pelas tantas um direcionamento surpreendente. A pacata cidade de Dom Pedrito tem um cinturão agropecuário no qual o uso de agrotóxicos se configura como o grande mal dos tempos. Tempos que remontam há cinquenta anos pelo menos e se anunciavam como os da modernização do Brasil. O programa sob os auspícios dos militantes e dos empresários, tinha o lindo nome de “revolução verde”. Ou seja, estamos morrendo há décadas pela sanha do agronegócio e pela ignorância da população. E esta é uma curva que o filme pega mais para o final. Barreto soube trabalhar este novo subtema com imagens de drone bem justificadas e a sua tragédia familiar ganha, assim, outra dimensão.
Não é preciso ser gaúcho, muito menos do Pampa, para sermos tocados pelo drama contemporâneo exposto, que junto à intolerância quanto à orientação sexual do amigo do diretor dotam o filme de uma tristeza sem-fim. E como a relação com as mortes por câncer atribuídas a pesticidas se estende a um grupo infinitamente maior, o filme viaja para muito além das fronteiras do Dom Pedrito.
Lançado em 2020, 5 Casas chega ao Brasil agora pela curadoria do 31º Cine Ceará: Festival Ibero-americano de Cinema, tendo circulado por alguns festivais e sendo fruto de editais como o Bertha Fund, da Holanda, fundo de desenvolvimento para documentários. Vê-lo no Canal Brasil um dia após ter sido exibido presencialmente no festival cearense, é uma experiência curiosa. Nos permite dividir a sessão doméstica com pessoas que não o veriam de outra forma. E 5 Casas passa no teste da audiência improvável, pois seu enredo e narrativa seguram a atenção. Seu modo de representação poético costura as entrevistas e deixa fluir os sentimentos melancólicos do narrador. Não à toa, o filme nasce como projeto de mestrado em Poéticas Visuais, no qual cineasta criou uma exposição de fotos com o tema autobiográfico.
As credenciais de Bruno Gularte Barreto como diretor não o permitem que já seja amplamente conhecido pelo Brasil. Ele cursou graduação em Cinema pela Unisinos, dirigiu curtas como Linda, uma história horrível (2013, adaptado do conto homônimo de Caio Fernando Abreu) e faz com 5 casas seu primeiro longa. Uma estreia que nos leva a ficar atentos a seus próximos trabalhos, porque representa um sopro de renovação.
O Rio Grande do Sul tem apresentado um cinema que faz a crítica (gaúcha) volta e meia se queixar, especialmente na comparação com produções poderosas como a pernambucana. Mas 5 casas pode entrar num inventário de poucos bens, que são os filmes inquietos e introspectivos, que se arriscam em formatos não comerciais. Neste quadro, e pensando só nos longas, podemos citar, mesmo que de um modo aqui apressado, desde Rifle, Castanha, Morro do céu, A Mulher do pai, Muito romântico a Tinta bruta. Diretores e diretoras da geração que pegou ainda criança a primeira onda de um cinema urbano (a partir de Verdes anos), que dá suas próprias pegadas em direções diversas, exibindo geografias cada vez mais singulares. Geografias humanas, culturais e cartográficas, que mostram o Rio Grande dos Sul sem façanhas, pois que não precisamos delas para viver. O cinema gaúcho precisa de filmes honestos, inquietos e criativos.
Em 5 casas, mesmo os possíveis incômodos podem ser relevados, como a narração em tom excessivamente baixo e monocórdia na comparação com as falas dos personagens, ao ponto de gerar dificuldade para ouvir o que o narrador diz. Em uma sala de cinema o problema pode não existir, mas não convém negligenciar os outros meios.
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