A Mão de Deus
Gente ordinária
Por Luiz Joaquim | 29.12.2021 (quarta-feira)
Comecemos pelo final. Fabietto (Filippo Scotti) está sozinho na cabine, em viagem, num vagão de trem. Ele admira a paisagem enquanto reflete sobre a vida que o aguarda. Antes, no mesmo plano sequência, que conclui chegando em Fabietto, vemos na cabine anterior meia-dúzia de moças sorridentes, amigas, lindas e barulhentas.
Não há diálogo aqui, mas o diretor Paolo Sorrentino, que levou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza deste 2021 com o seu A mão de Deus (È Stata la Mano de Dio, Ita./EUA, 2021), não deixa dúvida sobre o que significa esse ‘ir adiante’ do seu protagonista. É com a sintaxe do cinema que ele constrói, e bem, esses sentidos.
Fabietto ali já não é o mesmo adolescente do início do filme, fascinado por Maradona e pela possibilidade do ídolo futebolístico ir jogar no Napoli, seu time do coração, na cidade italiana onde reside com o pai (Toni Servillo), a mãe (Teresa Saponangelo), o irmão e a irmã mais velhos, respectivamente, Marlon Joubert e Rossella Di Lucca, num pequeno apartamento de classe média.
Não que, naquele novo momento de Fabietto, o amor pelo futebol tenha esmaecido, mas em A mão de Deus – título que faz menção a um gol duvidoso feito por Maradona contra a Inglaterra na Copa do Mundo de 1986, época em que a história transcorre – conhecemos um jovem vivendo num mundo de harmonia e descobertas, na cadência própria da vida, para depois irmos a um Fabietto que terá sua vida brutalmente virada de cabeça para baixo, acelerando o seu amadurecimento.
Inspirado na própria experiência juvenil de Sorrentino, A mão de Deus passa por muitos aspectos do florescer de um adolescente e, como não podia deixar de ser, as mulheres são figuras fundamentais aqui, seja pela volúpia da tia Patrizia (Luisa Ranieri), seja pela altivez da Baronesa (a incrível Betty Pedrazzi).
No episódio com a Baronesa, por exemplo, Sorrentino não apenas mostra um domínio autêntico na tensão entre os atores como desenha com maestria um momento fundamental da formação masculina que é normalmente esquecida pelo cinema, mas que quando bem representando, comove em todos os aspectos (Verão de ’42 vem à mente, mas com contexto diferente). No caso de Fabietto com a Baronesa, a autoridade do feminino sobre o masculino dá o tom da dramaturgia quase matemática aqui. É bonito de ver e sentir.
São muitos os valores do filme, um dos maiores parece ser a forma como o diretor constrói o universo ao redor do protagonista. A própria Nápoles é uma personagem em si, e a carga de importância para todo os elementos da numerosa família que Fabietto possui, e que Sorrentino ressalva, nos conquista facilmente.
Não é algo simples de fazer: criar um mundo familiar particular e nos deixar íntimo dele em cerca de duas horas, como se a todos conhecemos bem. A simplicidade das relações entre essa família napolitana de classe média e pretensões modestas, pautada na felicidade das coisas miúdas (é linda a alegria de Fabietto e seu irmão ao saberem que Maradona foi mesmo comprado para o Napoli), é um elemento definidor aqui.
Nesse sentido, soa redutor fazer uma associação definitiva do filme de Sorrentino com (mais uma vez) alguns de Fellini, tendo como âncora os personagens exóticos e algumas representações surreais que ilustram o enredo.
Apontar essa associação com o mundo felliniano é o óbvio a ser dito, quando, na verdade, há algo próprio de Sorrentino – logicamente – que parece ser o mais instigante a debater.
Por um caminho curioso, mas não enigmático, o que vem acontecendo é que aqueles que não suportaram A grande beleza (2014) estão receptivos à A mão de Deus. Talvez seja a hora de revisarem L’uomo in più (2001) e Aqui é o meu lugar (2011), só pra começar.
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