25ª Tiradentes, ’22: Cinema em Transição, curtas
Sobre ‘Qual É a Grandeza?’, de Marcus Curvelo, e ‘Voz na Escuridão’, de José Hélio Neto
Por Marcelo Ikeda | 24.01.2022 (segunda-feira)
Curtas da sessão ‘2’ da mostra temática ‘Cinema em Transição’ da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Acima, imagem de “Qual É a Grandeza?”.
Qual É a Grandeza?, de Marcus Curvelo
É impressionante (e até certo ponto comovente) como Marcus Curvelo vem conseguindo dar continuidade à sua filmografia. Depois de Eu, empresa, seu primeiro longa com financiamento (na verdade, uma série de TV que teve uma versão longa, codirigido com Leon Sampaio), Curvelo volta para o formato do curta-metragem suicida solitário artesanal.
Sua filmografia está centrada numa ideia de fracasso. O fracasso como sintoma, não como estágio, mas como estado imanente. Em seus primeiros projetos, Curvelo não conseguia financiamento porque seus filmes eram “muito pouco chiques”, muito pobres dentro da estrutura do cinema brasileiro dos anos 2000, em torno de projetos importantes, de esmero técnico e de comunicabilidade com o mercado. Agora, ele parece “ser chique demais”, como homem branco hetero de classe média privilegiado dentro do atual campo do cinema brasileiro. Ou seja, o cinema de Curvelo parece estar sempre fora, ele é sempre “o outro”, deslocado do seu tempo, em torno dessa ideia de fracasso.
Mas, num curto período de tempo, estimulado/apoiado por um grande curador brasileiro de posição internacional, Curvelo se viu surpreendentemente dentro de um certo contexto de visibilidade do cinema brasileiro independente, cujo ápice ocorreu com a premiação do genial Mamata no Festival de Brasília. Ali, Curvelo viu a esperança de finalmente passar a viver de cinema, de ter seu trabalho reconhecido. É a famosa esperança do sucesso, da repercussão e da visibilidade.
A partir de então, seu cinema ficou em meio a uma encruzilhada. Era preciso, agora, atender às expectativas criadas em torno de sua própria autoimagem: a do personagem-de-si Joder. Como seria possível avançar sem expor os esgotamentos de uma certa repetição dos usos de um mesmo dispositivo?
Mas, na verdade o que mudou desde então? Vemos, então, de novo, novamente, ou como sempre, Curvelo nesse seu típico lugar: o do fracasso. Mas Curvelo reflete sobre essas questões por meio de um humor cáustico, uma espécie de pastiche de si, uma autoironia com sua própria posição.
Qual é a grandeza então de ser artista, de ser cineasta? Nesse curta singelo, repleto de contradições, Curvelo e seu amigo Murilo (chamado de Isaías), uma espécie de alter-ego do realizador, vão até a Ilha da Moré, naquele “litoral por dentro” de Salvador, na Baía de Todos os Santos, numa viagem de passeio. Curvelo, por meio de Murilo (Isaías?), interage com as pessoas locais, oferecendo DVDs dos seus filmes, anunciando que vai desistir de sua profissão de cineasta.
A forma frontal como Isaías Murilo Curvelo conversa com as pessoas locais expressa essa dificuldade de certo cinema brasileiro contemporâneo em dialogar com o público, fora de sua bolha específica. Ao mesmo tempo, revela a dificuldade de o cineasta independente manter o seu ofício.
Desistir, mas ao mesmo tempo continuar. Filmar quase como um aposentado com grana, que vai passar o fim da vida se divertindo comendo moquecas e filmando o que há ao seu redor. Ou se inspirar em Tierry, ídolo da música baiana, por insistir até um dia finalmente fazer sucesso. Curvelo, ao contrário dos pescadores e trabalhadores daquele local, tem a opção de desistir, tem a opção de fracassar. Outros (a maioria) só continuam, porque não lhes resta outra alternativa.
Mas o que é belo nesse gesto é a possibilidade dessas duas classes sociais sentarem lado a lado e conversarem, em poderem ser talvez amigos ainda assim. Pois, ao mesmo tempo, enquanto conversa com as pessoas, Curvelo filma, e, ao final, se o filme se realiza, ele quebra a promessa anunciada desde o início. Se ele pede autorização às pessoas para serem filmadas, é porque suas imagens serão utilizadas em um filme. Insistir e resistir mas até quando? Por trás de sua irreverência e de seu humor, a ideia de morte vem assolando o cinema de Curvelo (“Filmar para não morrer”, ou “eu desisto”, como diriam as cartelas que passam despercebidas no início e quase ao final de Mamata). Desistir de filmar seria desistir de viver? Daí surge um plano desconcertante em que um coco é esmurrado diante de uma espécie de viga até que ele se abra por completo e nos ofereça seu miolo branco para ser devorado. Resistir, insistir até que nossa cabeça se arrebente por completo. Viver “dando murros em ponta de faca” ou como “água mole em pedra dura”?
Curvelo utiliza um recurso curioso: ele dubla a voz das pessoas comuns que lhe atravessam. Homens, mulheres, idosos, não importa: é sempre o mesmo tom de voz expresso pelo próprio Curvelo, nessa dublagem que mais parece a dos filmes americanos que invadem nossas tevês. Se a quebra do modelo sociológico, desde o clássico livro de Bernardet, é “dar a voz ao outro”, Curvelo representa o outro com sua própria voz. Nesse contato direto, não há qualquer resquício de populismo demagógico desse retrato de classe: ambos ali, trabalhadores e classe média artística estão à margem de um sistema muito maior, os empreiteiros que fecham as ilhas e cobram royalties para sua visitação.
Nesse curta, Curvelo promove uma espécie de recuo, que parece muito consciente de seu lugar de completa solidão dentro do atual campo de forças do cinema brasileiro. Esse recuo, depois de certo reconhecimento ou de um longa, que não o levou a qualquer “lugar de prestígio”, Curvelo parece ter retomado ao velho espírito dos seus primeiros curtas do Cual, àquele gesto baiano provocativo meio que dos primeiros filmes de Ramon Coutinho. Esse recuo, que é uma espécie de retorno, é na verdade uma permanência no seu lugar de sempre: o lugar do fracasso, a obsessão pelo fracasso, a aposta pelo fracasso – uma aposta ética que me lembra da velha frase de Beckett “preciso fracassar melhor”. Prosseguir desistindo, permanecer fracassando é o que torna tão político esse último curta de Curvelo – o que alimenta o delicioso paradoxo de que, ao anunciar sua desistência, Curvelo sai dessa declaração com mais um filme. Curvelo filma com uma incrível despretensão de gosto do presente, mas uma sensação de que, ao mesmo tempo, cada segundo é um gesto de despedida, pois nunca se sabe de fato se será possível continuar.
Voz na Escuridão, de José Hélio Neto
Em Rua Ataléia, André Novais Oliveira filma sua família durante mais um dos apagões de luz que se tornaram infelizmente cada vez mais comuns, especialmente em nossas periferias. Trata-se de uma filmagem antiga, retomada agora por Novais, já em pleno momento áureo de visibilidade em torno de sua filmografia, após o merecido reconhecimento artístico de seu trabalho, em especial após Temporada. Diante desse lugar social, Rua Ataléia é uma revisitação, por outras perspectivas, de lugares e corpos já habitados pela filmografia de Novais. Assim, Rua Ataléia funciona para o cinema de Novais quase como Tarrafal dentro da filmografia de Pedro Costa.
É algo diferente o que propõe o singelo Voz na escuridão, de José Hélio Neto. É difícil obter informações sobre o realizador, que acredito morar em Hortolândia, no interior de São Paulo. Esse curta, que poderia bem ter sido realizado em um único plano-sequência, se concentra na conversa entre dois amigos. O que está em jogo é decidir se se deve insistir em tentar fazer cinema, ou se se deve desistir para arrumar um trabalho mais estável. Esse eterno dilema do artista iniciante periférico diante das (o)pressões do sistema de valorização do capital é expresso por meio de uma estética minimalista, que dialoga com a dramaturgia do comum. O ambiente totalmente escuro é brevemente iluminado apenas pela luz da tela do celular. Os amigos conversam não presencialmente, mas por mensagens de áudio no whatsapp. Penso, então, nessa possível relação não apenas com Rua Ataléia, e com Qual é a grandeza?, mas também com Sete anos em maio, de Affonso Uchoa.
Assim como no extraordinário média de Uchoa, os dois amigos travam uma conversa que na verdade é uma confissão. Mas, em vez da fogueira a céu aberto do filme de Uchoa, a luz é a do celular, num aplicativo barato, dentro de casa. É curioso pensarmos que, por trás do discurso típico de desgaste dos aplicativos que multiplicam as fake news, Hélio Neto viu a luz do visor do celular como única luz possível que pode reverberar esse afeto distante, seja de sua mãe seja de um amigo. Essa luz artificial desse dispositivo tão desgastado pode ser essa fogueira digital que nos aquece. Luz essa que nos remete também ao próprio cinema – essa máquina que se alimenta de luz e que também nos pode ser tão humana.
A frontalidade do diálogo entre os dois amigos é desconcertante. Não vender seu único instrumento de trabalho (a câmera). Como reação ao desemprego e ao desamparo, a resposta é filmar o mundo. Não recuar nem desistir mas aprofundar. Esse é o gesto político do filme de Hélio Neto que, em vez de vociferar palavras de protesto, busca, por meio de um intimismo sutil, se reconectar com a produção artística como forma de habitar o mundo. A forma lúdica e honesta que o diretor encontrou para encenar essa questão tão delicada é profundamente inspiradora, porque humana e ética.
0 Comentários