25ª Tiradentes (2022) – Programa Panorama 3
Duas formas sutis de estar no mundo
Por Marcelo Ikeda | 30.01.2022 (domingo)
Manhã de domingo, de Bruno Ribeiro
JIB, de Laura Kim
Nesse nosso mundo repleto de excessos, em que o espalhafato, o ressentimento, a necessidade de lacração e a cultura do cancelamento fornecem pressões para dominar as relações humanas, esses dois curtas, exibidos na Série 3 da Mostra Panorama, parecem sugerir outros modos de ser, por meio de uma reavaliação de nossa rotina, expressa pela observação dos detalhes e dos silêncios, envoltos em grande delicadeza. Esses filmes insistem em nos dizer que, mesmo diante de toda a crise e dor que nos rodeiam, ainda é possível nos manter saudáveis.
Manhã de domingo, de Bruno Ribeiro, trata das angústias de uma jovem pianista na véspera de um recital. Um sonho com a mãe também lhe relembra que faz um ano que ela morreu. O curta acompanha os rastros dessa ausência no processo de criação dessa pianista. Ela ensaia num quarto e o som reverbera pelo ambiente fechado. A música tenta preencher o silêncio. Ou o afeto de um abraço. Mas ainda a travessia deve ser feita sozinha, sempre. À medida que o curta prossegue, à medida que se aproxima do recital, sua estrutura dramatúrgica se aproxima à do sonho, até então apenas narrado verbalmente pela personagem. As dobras entre sonho e real, ou entre vida e criação, entre infância e vida adulta, entre mãe e filha, entre a casa no interior e o apartamento na capital, ou, em última instância, entre a imagem e o som, entre a música e o silêncio, se fundem. O filme expressa esse desejo de mergulhar nas angústias dessa personagem mas não por meio do psicologismo clínico mas sim por um clima de sugestão apresentado por meio da linguagem do cinema, em especial por um tempo que não é exatamente o tempo cronológico ou realista mas um tempo cinematográfico.
Essa é uma das camadas do filme, mas há outra que não pode nunca ser ignorada. Manhã de domingo poderia ser um documentário sobre Raquel Paixão, uma pianista negra. Sabemos (na verdade, apenas sabemos, não vivenciamos) de todos os dilemas para uma mulher negra da periferia afirmar-se como artista, ainda mais no fechado círculo da música erudita. Daí a importância do tempo e do grande plano geral no filme: essa protagonista é de fato uma pianista, antes de uma atriz. E isso é nítido porque vemos (e ouvimos) Raquel no piano. Por trás dos elementos ficcionais, há uma forte camada documental que se imprime no filme, especialmente por meio da duração desse grande plano geral – a meu ver, muito mais forte nesses planos do que em outros, como a aula de piano ou na conversa na van sobre a “audição absoluta”, vista quase como um presente dos deuses. Há, também, claro, uma grande foto de Nina Simone acima do piano. Mas há também um maravilhoso recurso logo no início do filme, em meio às logomarcas de praxe: antes de qualquer imagem, em fundo negro, ouvimos primeiro a música da artista, depois a vemos diante do piano. Talvez alguns (muitos) tenham se impressionado/surpreendido quando perceberam que a musicista era negra. Os créditos, portanto, possuem múltiplas funções: uma função narrativa (o sonho da pianista que não vemos, o imaginário, o inconsciente), uma função sensória (a cor da tela, o locus do cinema, a música como sensibilidade artística) mas também apontam para uma questão social que está além do cinema. Manhã de domingo desperta essas questões de uma forma extremamente sutil e delicada, sem pretensão sociológica, sem querer apontar culpados ou vítimas, mas trazendo outras possibilidades para uma experiência sensível no cinema negro brasileiro.
Nesse atual momento em que vivemos, vemos surgir um conjunto de “filmes de pandemia” que refletem nossa condição temporária de confinamento. A casa passou a ser um elemento constante na dramaturgia do curta-metragem brasileiro como espaço de retiro compulsório do mundo. No entanto, podemos ver essas mesmas questões, em torno dos temas da casa e da rotina, sob outras perspectivas, se imaginarmos a função desses espaços para outras culturas e modos de ser. Nessa sociedade – e também no cinema brasileiro – que se debruça sobre esse debate, muitas vezes de forma acusatória, entre negros e brancos, é preciso pensar: e os amarelos? E aqueles que não são nem negros nem brancos, ainda podem existir?
Jib, singelo curta de Lira Kim, nos desperta para essas questões ao mostrar a rotina de uma mãe e uma filha em sua casa. Arrumar a casa, fazer compras, cozinhar, mantê-la limpa, lavar e passar as roupas, manter o quarto arrumado são tarefas rotineiras que não estão meramente associadas às amarras das funções sociais rotuladas como tarefas da mulher domesticada, mas curiosamente à possibilidade de equilíbrio e de liberdade interior. “Jib”, em coreano, significa “casa”. Ao mesmo tempo, para a filosofia oriental, a casa é a morada do ser. Se pensamos no audiovisual sul-coreano, em grande evidência nos últimos anos, logo poderíamos pensar em obras como a série Round6 ou o filme Parasita, que circularam em grandes plataformas midiáticas de alcance global (o Netflix ou o Oscar), ou, no campo da música, na extravagância do k-pop. Jib, então, nos proporciona experimentar um outro lado dessa cultura, em diálogo forte com um sentido tradicional da cultura oriental. Apesar de coreano, Jib nos faz recordar do cinema do japonês Yazujiro Ozu, mas não por meio de recursos estilísticos como a câmera no tatame e os enquadramentos frontais, mas por uma revalorização da rotina como modo de ser no mundo. Há, ainda, planos que ressignificam o espaço entre os objetos, não como vazios, mas como elementos de circulação dessa energia vital – o que a cultura oriental zen chama de mu. A panela de arroz continua lá, assim como planos que alguns poderiam se remeter aos pillow shots de Ozu. Mas, ainda assim, é preciso lembrar que Jib, apesar do título, não é um curta coreano nem japonês, mas brasileiro (é preciso também perceber que o curta se chama Jib, e não 집). Há, portanto, elementos que nos indicam a combinação dessas culturas: elementos como a arquitetura da casa ou a relação entre mãe e filha nos relembram que estamos no Brasil. De todo modo, o que é mais notável nesse singelo curta de Kim é sua contribuição em nos lembrar que os recursos estilísticos do atual “cinema de pandemia” na verdade podem nos sugerir para o contato com outras formas de estar no mundo, que estão muito além do momento de exceção em que vivemos.
Assim, o paradoxo desse singelo curta solitário é ser, ao mesmo tempo profundamente feminino e amarelo (não hegemônico), e curiosamente radicalmente avesso às pautas impositivas de certas vertentes do cinema brasileiro contemporâneo, em torno do chamado identitarismo. Nesse ponto, ainda que de formas bastante distintas, Jib curiosamente dialoga com Manhã de domingo.
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