A Colina dos Homens Perdidos (1965)
A sanha louca dos homens loucos pela disciplina, num clássico de Sidney Lumet
Por Luiz Joaquim | 06.01.2022 (quinta-feira)
Oriundo do teatro e da tevê, com programas ao vivo, forjado nos anos 1950, Sidney Lumet (1924-2011) dizia que “a natureza desses veículos” o obrigou a faze a seleção dramática de antemão. Em outras palavras, Lumet chegou ao cinema com 12 homens e uma sentença (1957) muito confiante do que queria estabelecer na construção de seu filme.
Sempre muito consciente e antecedente nas escolhas dramáticas que iriam compor suas obras, ele era conhecido também pelos ensaios prévios às filmagens com seus atores, o que tornava a experiência no set, já na filmagem, em algo rápido, ágil.
O resultado de tanto preparo era a realização de poucas tomadas para chegar no resultado dramático daquilo que desejava e, digamos, uma composição de enquadramentos que funcionava como uma “montagem na câmera”; coisa que só gigantes do cinema – John Ford, Orson Welles – eram capazes de promover.
Vendo A colina dos homens perdidos (The Hill, GB, 1965) mais de cinco décadas de seu lançamento no Brasil (25 de dezembro de 1965), a impressão que fica é a de um Lumet dando mais um passo acima no degrau da excelência cinematográfica que construiu ao longo da carreira.
Do ponto de vista da forma, A colina… apresenta-se com um frescor e um requinte de modernidade de encher os olhos de qualquer espectador do século 21. Lumet imprime um ritmo na edição que pode ter apanhado muita gente de surpresa em sua época (e talvez incomodado, no mau sentido), mas nada melhor do que o tempo para estabelecer o lugar do filme no panteão daquelas obras inesquecíveis por serem antecipadora de tendências.
Aos menos dois festivais importantes registraram o seu valor no ano do lançamento: Cannes deu o prêmio de roteiro para Ray Rigby, e o Bafta deu o prêmio de melhor fotografia britânica em P&B para Oswald Morris.
Morris e Lumet usaram e abusaram dos recursos que possuíam para estabelecer com a câmera, num volume enorme de enquadramentos distintos, a resolução da tensão oriunda dos diálogos entre vítimas e algozes do enredo.
O aproveitamento espacial da ação com closes intensos, ora alternando plano e contraplano com angulações diversas (e constantemente surpreendentes), ora aproveitando a profundidade de campo do set, o qual simula um reformatório de militares num deserto, faz de A colina… um parque de diversões visuais (no bom sentido). A sequência da rebelião é um deleite à parte.
A fotografia ainda reforça, com seu alto contraste, o sofrimento dos protagonistas sugestionando o calor intenso do contexto dramático, cuja locação tomou lugar no sul da Espanha.
‘Moderno’, reforçamos, é a palavra que melhor define este filme que seria atemporal se não forçasse tanto a corda em questões que hoje soam questionáveis. Falamos de situações racistas que, à época, já eram brutais o suficiente para chamar a atenção do espectador. O valor da coisa aqui é que o racismo está no lado dos ‘bad guys’ da história, deixando bem claro o quanto há de erro (hoje crime) naquela postura.
Os ‘bad guys’, no caso, são os Major Bert (Harry Andrews) e o sargento Williams (ian Hendry). Enquanto o primeiro dirige com mão de ferro o reformatório de militares indisciplinados da coroa britânica, o segundo se deleita em determinar que seus subordinados dobrem até o ponto de um deles quebrar.
A mais temidas das tarefas de disciplinarização é subir e descer indefinidamente uma colina superficial, com areia fofa, sem nenhuma função prática que não seja a de fatigar os soldados insubordinados.
Baseado na peça de R. S. Allen, a história acompanha cinco novos militares condenados que chegam ao reformatório para sofrer os abusos de William sob a proteção de Bert com o pretexto de discipliná-los. É interessante observar a composição desse grupo, distinto entre si, inclusive do ponto ideológico quando o assunto é a validade do exército britânico regido por uma cartilha caduca, da época da Rainha Vitória.
Uma fatalidade irá unir o grupo formado pelo questionador Roberts (Sean Connery), o sensível Stevens (Alfred Lynch), o beberrão negro King (Ossie Davis), o ladrão Bartlett (Roy Kinnear) e o truculento McGrath (Jack Watson).
Uma curiosidade: Connery vinha de seu terceiro 007, com o quarto (007 Contra a chantagem atômica) pronto para ser lançado quando A colina… veio ao mundo. O ator fez questão de estar na produção de Lumet para provar que não era apenas o galã que a sua carreira construía. Deu certo. Sua atuação como Roberts é comovente e de forte presença cenográfica. O filme o habilitou para papeis mais audaciosos que viria a assumir dali por diante.
Isso porque A colina…, do ponto de vista do conteúdo, evolui num crescente dramatúrgico daqueles em que, a certa altura, o espectador se percebe numa teia de situações aparentemente insolúveis, com todas elas colocadas não por ações, mas por argumentos que descontroem as certezas tanto dos algozes quanto das vítimas.
De forma comparativa, é como se na situação clímax do filme tivéssemos três inimigos, com cada um apontando uma arma para o outro, num impasse tenso, imposto pela mira da arma. No caso de A colina… a arma são os argumentos dos personagens.
Ver A colina… pela primeira vez é como voltar no tempo em que o cinema burilava cada diálogo como se qualquer palavra dita (e da forma como fosse dita) tivesse uma espécie de valor sagrado. Algo um tanto, digamos, relaxado nos dias de hoje.
– filme visto em DVD, lançado pela Vintage Films
Em tempo:
– No Recife, A colina dos homens perdidos estrou no carnaval de 1966. E na leitura dos críticos Celso Marconi e Fernando Spencer, era a melhor película disponível nos cinemas da cidade. Veja abaixo.
– O filme viria a ser exibido na tevê oito anos depois, em 1974, no programa ‘Sessão Coruja’, da Rede Globo, na meia-noite de uma sexta-feira 26 de julho.
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