A Filha Perdida
Sobre medos e incertezas intraduzíveis aos homens
Por Luiz Joaquim | 03.01.2022 (segunda-feira)
É certo que A filha perdida (The Lost Daughter, EUA/Gre., 2021), adaptação levada para tela a partir do livro hormônio de Elena Ferrante, coloca a maternidade em primeiro plano – a começar pelo título –, mas a atriz Maggie Gyllenhaal, estreando aqui na direção, aproveita bem o ambiente que cerca sua protagonista para realçar outros aspectos intraduzíveis aos homens.
A protagonista no caso, defendida com sedução absoluta pela gigante Olívia Colman, é a professora de Literatura Comparada Leda, 48 anos, que, sozinha (informação que não seria relevante de destacar se o personagem fosse homem), passa férias numa pequena cidade do litoral grego.
Em pelo menos três sequências, Gyllenhaal ilustra de maneira didática (sem soar didática) no que há de tenso sobre o tipo de horror que mulheres podem sentir simplesmente por esbarrarem em homens na hora errada e no lugar errado, ou seja, sentir temor só por serem mulheres. Ainda que, aqui, Leda nos seja apresentada como uma mulher que não se intimida facilmente.
Numa das situações, ela caminha da praia para o carro e encontra dois homens encostados nele. Não tem a menor importância o equívoco cômico que se revela depois, mas sim o tom intimidador do contexto.
Na outra situação, Leda está num pequeno cinema da cidade curtindo A última vez que vi Paris (1954, de Richard Brooks que, não por acaso, fala de paternidade/literatura), até que um grupo de meninos adolescentes entra no meio da sessão fazendo baderna e comentários machistas sobre Elizabeth Taylor. Leda tenta controlar a situação, mas nem ela e nem a gerente do cinema (outra mulher) consegue pôr os jovens quietos. A coisa só acalma com um grito de “Basta!” dado por um outro espectador. Homem.
Mas A filha perdida, disponível na Netflix desde 31 de dezembro último, está particularmente interessado naquilo que é, talvez, o maior dos temas insondável aos homens: a maternidade. A beleza na forma como Gyllenhaal aproveita o romance de Ferrante está no realce que estabelece para as dúvidas que suas personagens experimentam.
Num dos momentos chaves do enredo, a jovem mãe Nina (Dakota Johnson, Cinquenta tons de cinza) pergunta a Leda se algum dia isso vai passar, referindo-se às dúvidas e sofrimentos relacionados à responsabilidade da maternidade. “Isso o que?”, pergunta a experiente Leda. Para ouvir da jovem um “eu não sei”, uma vez que ela nem sabe dar um nome para aquilo.
Na mesma conversa, um outro “eu não sei” vem como resposta dada, desta vez por Leda para uma pergunta simples feita por Nina. A pergunta é objetiva, mas aquilo que levou Leda a cometer o seu ato duvidoso está longe da simplicidade e de oferecer uma resposta lógica. Estando a complexidade do ato de Leda intrinsicamente ligado aos seus movimentos como mãe no passado.
Outro mérito de Gyllenhaal nessa bela estreia é transitar com elegância pelos dois tempos da história: aquele da Leda adulta e aquele dela jovem (vivida com vigor por Jessie Buckley (de Estou pensando em acabar com tudo).
É bonito como a crise vivida pela então jovem mãe Leda mostrada aqui na história, com duas filhas pequenas, é representada numa contextualização que não admite pré-julgamentos fáceis – ao menos pelas espectadoras que são mães e entendem, sem precisar de palavras para explicar, aquela angústia da qual Nina “não sabe dar um nome”.
E se nenhuma das situações complexas sobre feminilidade cinematograficamente arquitetadas por Gyllenhaal acordar o espectador masculino, talvez uma cena chame a atenção deles.
Nela, a jovem Leda está numa cidade onde participa de um congresso e, num quarto de hotel, fala ao fone com a família. Faz isso enquanto vai desabotoando a roupa. Quando chega a vez de se livrar do sutiã, faz um movimento no seio que revela o conforte do gesto.
Nenhum homem filmaria isso com a importância desimportante que Gyllenhall criou para a situação encenada com tanta propriedade por Buckley.
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