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Festivais

A Vizinhança do Tigre

A sublimação da violência pela forma, como uma maneira de relacionar-se com ela.

Por Marcelo Ikeda | 25.01.2022 (terça-feira)

Certamente um dos filmes mais marcantes da Mostra Aurora de Tiradentes é A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa, contemplado com o prêmio de melhor filme daquela edição de 2014. Certamente aquela foi a melhor edição da Mostra Aurora, em que o filme de Uchoa simplesmente se sagrou vencedor sobre Branco sai, preto fica, de Adirley Queirós. Dois dos mais importantes filmes desse momento de renovação do cinema brasileiro acabaram dando menos espaço para outros filmes excelentes, como Batguano, de Tavinho Teixeira (meu preferido) e Aquilo que fazemos com as nossas desgraças, do Arthur Tuoto.

Nesse filme, Uchoa encontrou a sua dicção particular dentro de um cinema mineiro, ainda dominado pelos ensaios visuais poéticos, herdeiros da imensa tradição da videoarte mineira, como a Teia, que nessa edição da Aurora estava representada pelo filme O bagre africano de Ataleia, filme bem interessante e infelizmente pouco conhecido de Gustavo Jardim e Aline X. O cinema de Uchoa e os filmes irreverentes da Filmes de Plástico abriram o cinema mineiro para outras possibilidades autorais. É curioso que A Vizinhança do tigre foi gestado durante muitos anos, e diz a lenda que outros cortes foram apresentados em curadorias anteriores do evento, um deles de quase três horas, e Uchoa foi trabalhando durante muitos anos com o material até chegar nesse formato mais amadurecido. Esse filme destoa totalmente de seu primeiro longa-metragem Mulher à tarde, também apresentado na Mostra Aurora, que tem um ensaio formal mais próximo de certos recursos desse cinema poético mineiro. Mas a originalidade de A Vizinhança do tigre foi introduzir essa pegada de um documentário social que pudesse representar as vidas da juventude periférica por meio de uma poética dura, crua mas potente trouxe uma enorme contribuição para o cinema contemporâneo brasileiro. A meu ver, esse filme de Uchoa está diretamente influenciado pelo cinema de Pedro Costa em No quarto da Vanda. Ao mesmo tempo, o filme de Uchoa não tem nem o fatalismo nem o formalismo do cinema de Costa. O legado desse filme de Uchoa foi enorme, reverberando de diversas formas dentro do cinema brasileiro, como podemos ver em especial em Baronesa, montado pelo próprio Uchoa.

Tive o privilégio de ser o crítico convidado, que tem o papel de falar sobre o filme antes da participação do diretor e da equipe, no famoso debate da manhã seguinte após a projeção. Houve alguns incidentes curiosos nesse debate. O primeiro deles é que Uchoa se recusou a me enviar uma cópia online para que que pudesse assistir ao filme antes da projeção, como é de praxe. Assim, tive que ver o filme pela primeira vez na projeção no Cine Tenda às 22h e participar do debate no dia seguinte às 10h da manhã. No debate, procurei centrar minha apresentação em como A Vizinhança do tigre dialogava com um campo ou uma certa linhagem recente do cinema brasileiro, que lidava com filmes entre o documental e o ficcional, como O Céu Sobre Os Ombros, Avenida Brasília Formosa, Morro Do Céu, A Cidade É Uma Só?, Esse Amor Que Nos Consome, entre outros. Uchoa ficou bastante irritado com essa relação, disse que realizou seu filme sem nenhum desses filmes como referência, e que a proximidade entre esses filmes era uma coisa produzida apenas pelo universo da crítica rs. Mas, entre todos esses filmes, o que mais causou indignação a Uchoa foi a comparação com O céu sobre os ombros. Ele fez questão de afirmar categoricamente que seu filme não tinha nenhuma relação com esse filme, quase como se a comparação fosse algo ofensivo. Para mim, estava claro que o que estava em jogo era exatamente os conflitos de poder no interior do cinema independente mineiro, dominado na época pelo Coletivo Teia. Pretendo falar um pouco mais sobre isso analisando Ventos de Valls, de Pablo Lobato. De todo modo, depois da festa de encerramento, brinquei com Uchoa que meus comentários haviam dado tanta sorte para seu filme, que ganhou o prêmio principal da Aurora, que na época era um valor em dinheiro razoavelmente expressivo (R$50mil), que eu merecia uma comissão do prêmio rs. Claro, era uma brincadeira, não aceitei nem uma cerveja que ele me ofereceu rs.

Reproduzo abaixo o texto que escrevi sobre o filme em fevereiro de 2014, publicado em meu site Cinecasulofilia, já após o encerramento da Mostra, que resume parte das minhas anotações da minha participação na mesa como crítico convidado. Segue o texto na íntegra.

“Em A vizinhança do tigre, Affonso Uchoa utiliza alguns artifícios já conhecidos no cinema contemporâneo: falar da periferia de uma forma afirmativa, mesclando ficção e documental. Ou ainda, colocando de forma melhor, tornando indiscerníveis os limites entre o que existe previamente à presença da câmera e o que é transformado a partir do momento em que ela é disparada. Ou seja, a partir de um encontro com o mundo, com o dia-a-dia dos personagens e com o espaço (geográfico, humano), o realizador engendra estratégias para que algo brote na presença da câmera, algo que possa dizer de forma mais potente O QUE É aquele mundo.

Assim, o filme se insere numa tradição do cinema contemporâneo mesmo a nível mundial (não temos como não lembrar Pedro Costa) mas especialmente no caso brasileiro. Em maior ou menor grau, podemos dizer que VIZINHANÇA se aproxima de filmes recentes como O Céu Sobre Os Ombros, Avenida Brasília Formosa, Morro Do Céu, A Cidade É Uma Só?, Esse Amor Que Nos Consome, entre outros.

A vizinhança do tigre observa então alguns jovens da periferia, de um bairro de Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte. O filme se baseia então em “esquetes”, em alguns momentos em que esses amigos jovens estão juntos. Não há propriamente um desenvolvimento dramatúrgico; não há o desejo de dar a ver o que são as condições sociais desse lugar; os personagens não são vistos como oprimidos, como explorados ou como vítimas. Os meninos procuram ser. Os meninos não são representantes de classe.

A política de A vizinhança do tigre, ou ainda, o seu cinema social, é bem diferente, portanto, do olhar do Cinema Novo, ou mesmo de um certo cinema brasileiro da “retomada”.

A violência está presente em todo o filme. Os personagens não são propriamente miseráveis mas vivem em situação de pobreza. Os meninos brincam de armas, conhecem o jargão da violência, fala-se em pessoas que foram presas, ou no tráfico de drogas. Os meninos se xingam. Vão para um terreno baldio e jogam pedras. Exibem as suas cicatrizes, de tiros ou facadas. Cantam um rap cuja letra fala de tudo isso.

No entanto, não é a violência de Cidade de Deus. Não existe um projeto de futuro: os meninos querem apenas brincar, aproveitar o presente. Se a violência está o tempo todo no filme, ela não é vista como instrumento de exploração, de espetacularização da barbárie.

A estratégia de todo o filme é a de humanizar o convívio dos personagens com a violência. Os meninos sublimam a violência pela forma como, a partir dela, se relacionam. Eles criam uma forma possível de viver que não dá as costas à violência, que não nega a violência, mas que resignifica a violência, transformando-a numa forma de afeto. Ou seja, a violência é parte inerente desse dia-a-dia, e eles não a negam, não a evitam: eles assimilam a violência, reconhecem-na como parte de suas vidas, e a deslocam, na forma como interagem uns com ou outros.

De outro lado, a ressignificação da violência em afeto gera um rap. Ou ainda, gera um filme. Enquanto fazem os personagens de si mesmos, os meninos revalorizam a violência, jogando-a para um outro lugar.

Ou seja, a violência gera afeto, sem negar a violência. A violência está no corpo e na voz desses personagens, mas curiosamente é percebida também como afeto. Esse é o principal mérito e a principal contribuição do filme do Affonso: pensar a juventude, a periferia e o papel da violência nesse olhar de cinema e de mundo.”

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