Estrada para Ythaca
Talvez o filme que melhor resuma o espírito de 2010, desejando renovação dos rumos do cinema brasileiro
Por Marcelo Ikeda | 25.01.2022 (terça-feira)
Já escrevi muitos textos sobre Estrada para Ythaca. O principal deles é um longo capítulo de mais de 30 páginas para meu livro “Fissuras e fronteiras: o Coletivo Alumbramento e o cinema contemporâneo brasileiro”. A capa desse livro, que analisa em detalhes a trajetória do Coletivo Alumbramento em quase 400 páginas, é inspirada na famosa cena da encruzilhada em Ythaca, que, por sua vez, é uma referência à cena de Vento do Leste, filme de Jean-Pierre Gorin e Jean-Luc Godard, em que ninguém menos que Glauber Rocha está no vértice da encruzilhada, apontando dois diferentes caminhos na estrada.
Quando esse filme bastante despretensioso recebeu o Prêmio de Melhor Filme na Mostra Aurora em 2010, estava-se fazendo história. Estrada Para Ythaca talvez seja o filme que melhor resuma o espírito daquele momento, um desejo de renovação dos rumos do cinema brasileiro expressados por uma nova geração. Realizado de forma completamente independente, num projeto coletivo, praticamente todo realizado pelos quatro diretores, Ythaca promoveu um destaque para a atual cena cearense ao receber o prêmio de melhor filme no Festival de Tiradentes em 2010. Neste filme, a irreverência se mistura à melancolia, o percurso pelo interior do Ceará escapa ao olhar rural típico do cinema da região, o tempo e o espaço sofrem transformações inesperadas, em que o prazer pelo processo vale muito mais do que a busca por um “porto seguro”. Os personagens oferecem um “brinde à resistência”, mas poderia ser um brinde à liberdade, já que, afinal de contas, é como se o futuro fosse agora mesmo.
Esse filme abriu um caminho de possibilidades para o cinema brasileiro independente daquele momento. Um filme extremamente barato realizado sem roteiro nem editais públicos, realizado a partir da amizade e do amor ao cinema, por meio dessa relação umbilical entre cinema e vida. Não dá pra entender o que se passava no cinema brasileiro independente nessa virada de década entre 2000-2010 sem passar por aquela estrada que leva a Ythaca. Essa melancolia misturada com humor, essa vontade de viver a vida apenas pelo presente, esse tédio e essa falta de sentido que são reconfigurados a partir de uma amizade despretensiosa, tudo isso expressava um estado de coisas que reverberou de forma inesperada. Era o auge do Coletivo Alumbramento, que já havia apresentado curtas de formatos e propostas muito inventivas.
Diversos outros curtas e longas foram realizados prosseguindo o caminho aberto por Ythaca. Acho que a importância de um filme se dá não apenas no filme em si, mas por seu legado, ou seja, por quanto um filme reverberou no interior do campo cinematográfico, e influenciou outros realizadores e gerou debates.
Apresento aqui o texto que escrevi sobre o filme em abril de 2010, poucos meses após a apoteótica sessão na Mostra de Tiradentes. Era um texto que comparava quatro filmes brasileiros recentes em torno do tema da juventude. Na época, me interessava muito pensar em filmes jovens não apenas por terem personagens jovens mas por apresentar uma forma jovem de narrar. Eis o texto:
“(…) Estrada Para Ythaca, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, é o mais radical dos filmes analisados. A radicalidade já está impressa no filme (ou melhor, gravada na fita, ou ainda, salva no HD) por compor um projeto coletivo, assinado por quatro diretores, experiência cada vez mais rara nos dias de hoje, em que o “cinema de autor” representa o trunfo do cineasta solitário, da “câmera-caneta”. Os quatro diretores não assinam somente a direção mas praticamente todas as funções técnicas. Dessa forma é um projeto essencialmente coletivo. A coletividade de seu modo de produção (o filme é todo financiado pelos realizadores, sem editais ou leis de incentivo) combina de forma orgânica com o próprio objetivo do filme, já que Ythaca é um filme sobre a amizade, a amizade entre os quatro diretores, e um quinto membro, cuja figura “fantasmagórica” paira durante todo o filme, ainda que eventualmente apareça: sua ausência física é compensada por uma presença marcante ao longo de todo o filme. Falo de Ythallo Rodrigues (cuja estranha grafia do primeiro nome inspirou a tresloucada grafia de Ythaca), amigo supostamente morto, que estabelece o mote para o filme: os quatro amigos embarcam em uma viagem de conotações físicas e metafísicas. Falo “supostamente”, pois Ythallo está morto apenas na diegese: apenas o personagem de si mesmo jaz, mas ele está “vivinho da silva” lá no Cariri, inclusive dirigindo seus próprios filmes. Essa ambigüidade entre as influências da representação e o real é uma das mais fortes marcas do filme.
Se em Morro do Céu, o gaúcho Spolidoro vai ao interior do Rio Grande do Sul para, sozinho, observar o tímido cotidiano do jovem Bruno Storti, num projeto viabilizado pelo DOCTV, Estrada Para Ythaca em várias medidas pode ser visto como um filme oposto, apesar de um diálogo marcante: são quatro diretores que, num projeto coletivo, bancado por eles mesmos, adentram pelo interior do Ceará, num autêntico road movie, a fim de encontrar algo que não se sabe muito bem, talvez rastros do amigo morto, talvez no fundo, apenas um passeio de fuga e de encontro de si mesmos.
Estrada Para Ythaca é um filme sobre a amizade, espelhada na escolha radical dos quatro diretores em serem os protagonistas do próprio filme. Filme que é absolutamente ficcional mas ao mesmo tempo uma autobiografia. São nesses entremeios entre o documentário, o experimental e o cinema de ficção que os quatro diretores se filiam a uma certa tradição do cinema contemporâneo. Vendo Ythaca também parece claro que os diretores pisam num grande terreno de referências, que vão desde filmes americanos “high school” dos anos oitenta até ícones do cinema contemporâneo como Gerry, de Gus Van Sant, O canto dos pássaros, do catalão Albert Serra, ou mesmo uma direta citação a Vento do Leste, de Godard & Gorin, numa cena que deslumbrou os críticos presentes em Tiradentes (onde recebeu o prêmio de melhor filme) pelas possibilidades de leituras.
Mas acima de tudo – e esse é o principal objetivo desse texto – Ythaca é um filme jovem. Filme feito por jovens, todos diretores abaixo dos trinta anos, que brincam de fazer cinema, e enquanto brincam fingindo ser, acabam sendo. Ou ainda, por trás de suas barbas postiças e de seu jeito canastrão, os quatro diretores são jovens que não querem crescer, que não fazem planos para o futuro. Nessa fase fugidia que é a juventude, esses diretores são adolescentes tardios que não só se assumem jovens mas principalmente se orgulham disso (Rushmore??) Eles se preocupam em viver o presente, intensamente, em saborear os percursos desse caminho que os leva a lugar nenhum a não ser a si mesmos (como aliás uma cartela ao fim do filme aponta, uma citação de Kaváfis). Essa despretensão e essa ingenuidade por sua vez são acompanhadas por um cinema extremamente sofisticado de referências, permeado de uma certa melancolia, expressa num desejo pelos grandes planos gerais e tempos mortos, num deslocamento entre o corpo e a paisagem, num cinema sobre a amizade composto de poucos diálogos e preenchido por silêncios. É na forma particular como o filme trata essa necessidade de um afeto distante, esse desejo de fuga e de encontro, através de um cinema “leve e engraçadinho” (diria “cool”), que faz o seu encanto particular, um filme misterioso, irregular, difuso, talvez como o cinema e a vida.”
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