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Festivais

Histórias que nosso cinema (não) contava

Nova luz aos filmes que permanecem sob o véu de certa invisibilidade do cinema brasileiro

Por Marcelo Ikeda | 24.01.2022 (segunda-feira)

– texto originalmente publicado em maio/2017 para o folheto crítico do Cine Rebuceteio, cineclube no Cinema do Dragão do Mar, republicado em cinecasulofilia.com

Realizado exclusivamente com imagens e sons de filmes brasileiros dos anos setenta, Histórias que nosso cinema (não) contava busca resgatar uma filmografia brasileira considerada “menor”, inserindo novos olhares na historiografia do cinema brasileiro. A “pornochanchada” por muitos anos recebeu o estigma de um gênero menor, cujo valor seria medido apenas pelo número de espectadores e não por suas possibilidades estéticas. O “cinema popular brasileiro” vem sofrendo, por muitos anos, um preconceito por parte da crítica e da mídia, por não se adequar aos parâmetros estabelecidos pelos cânones de um certo cinema de autor.

O filme de Fernanda Pessoa é, desse modo, o “lado B” de Cinema Novo, de Eryk Rocha. Premiado no Festival de Cannes, realizado simplesmente pelo filho de Glauber, maior expoente do movimento, trata-se de um ensaio visual poético que busca um olhar íntimo para o principal movimento cinematográfico do país. O “cinema novo” permanece como movimento central na história do cinema brasileiro, em torno do qual, a partir de meados dos anos sessenta, todo o cinema brasileiro gravita. Sem deixar de reconhecer a indiscutível importância histórica do movimento, é preciso, no entanto, abrir a “caixa de pandora” para reconhecer também o valor de outros filmes e autores que compõem a história de nosso cinema. Nosso cinema é múltiplo, e sempre cabe espaço para mais um em nossos corações e mentes.

O título do filme de Fernanda nos aponta exatamente para esse curioso paradoxo: se por um lado esses foram os mais vistos filmes de sua época, por outro, permanecem sob o véu de certa invisibilidade. O gesto de Fernanda é, então o de “nos fazer ver” o que são esses filmes. Trata-se também de um filme-ensaio, manipulando as imagens de arquivo para oferecer um retrato que desconstrua o olhar ainda hegemônico sobre essa produção. Afinal, quais histórias nosso cinema contava? O visível e o invisível. Por trás das convenções de gênero e tendo que seguir os estritos códigos de censura da ditadura militar da época, o que de fato esses filmes contavam?

É preciso, então, voltar aos filmes; é preciso então revê-los. Fernanda realiza o trabalho de uma arqueóloga, ao retirar esses filmes de suas tumbas para que possamos vê-los com os olhos do presente, com olhos descontaminados dos preconceitos de uma época. Com “olhos livres”, como diria Carlos Reichenbach.

Se as pornochanchadas sempre foram vistas como filmes escapistas cujo principal atrativo eram as cenas de sexo, que atraía a incauta massa de espectadores que não queria refletir sobre os problemas políticos de seu país, o que o filme de Fernanda nos mostra é uma revisão desse olhar apressado, inserindo novas camadas de interpretação para esse conjunto de filmes.

Nessa segunda leitura, Histórias que nosso cinema (não) contava se revela não apenas um filme sobre a historiografia do cinema brasileiro (um filme para cinéfilos) mas primordialmente um filme que revisita a própria história do nosso país. Vemos, então, como o cinema popular brasileiro dos anos setenta dialogou com o próprio momento histórico de nosso país. Longe, portanto, de ser escapista, descobrimos, com o recuo do tempo, como esse cinema estava profundamente embebido da realidade social brasileira, driblando os mecanismos da censura – tanto a oficial (a de Estado) quanto a de mercado (a necessidade de sobrevivência num mercado como sempre dominado pelo produto estrangeiro) – ora revelando as contradições e hipocrisias do “doce charme” da burguesia brasileira ora diretamente criticando suas convenções.

Assim, surge no filme um conjunto de temas sociais que mostram desafios do país nos anos setenta: vemos a escalada do capitalismo brasileiro, em seu anseio pelo desenvolvimento, seja pela via do capitalismo industrial quanto do financeiro. Fala-se muito em dinheiro (“dinheiro vivo” ou ações), na criação de empresas e indústrias (que poderiam fabricar plástico ou penicos). Vemos a presença do capital estrangeiro, por meio do sotaque dos gringos engravatados, ou mesmo na bolsa de valores. Os gráficos que revelam a “subida” das ações causam um estímulo quase sexual aos acionistas. A classe média brasileira busca elevar o seu padrão de consumo, por meio da explosão do consumismo, com um desfile de carros, roupas, jóias e outros acessórios. Mas escondem suas dificuldades por trás de um cenário de grave crise econômica. A recessão, ou ainda, a inflação e o desemprego, são revelados por meio de frases de duplo efeito (“houve um tempo em que eu subia como o dólar”, “estou vendo como você está duro!”). De outro lado, alguns dos filmes tocam em pontos considerados “subversivos”, mostrando o outro lado da moeda: a “ameaça” do comunismo, a caça às bruxas (os policiais que vão atrás dos livros proibidos), até mesmo uma cena de tortura. Outros temas que revelam a insatisfação popular, como a greve (mesmo que seja a greve em um puteiro!), as precárias condições de trabalho, ou mesmo a reforma agrária, são abordados em alguns dos filmes exibidos.

Outro ponto importante abordado pelo filme é a presença da mulher. Os filmes da pornochanchada sempre foram considerados machistas e vulgares, tratando a mulher como mero objeto de desejo masculino. Até que ponto é possível revisitar esse olhar? É possível afirmar  que em alguns desses filmes há momentos de protagonismo feminino, dialogando com a emancipação feminina e a revisitação dos costumes com a revolução sexual dos anos sessenta? É possível afirmar que nesses filmes era permitido que as mulheres também gozassem, sendo donas do seu próprio corpo, para além da moral fechada de sua época? São perguntas provocativas, ainda mais pelo fato de o filme ser dirigido por uma mulher, e que o filme não responde de uma forma conclusiva, mas apenas alusiva, como é a tônica de seu discurso.

Minha única ressalva (metodológica) ao filme de Fernanda é que, ao falar de filmes da pornochanchada, a diretora escolhe um escopo de filmes que pode ser considerado restritivo, incluindo alguns filmes que não preenchem os perfis mais básicos do gênero, como Terror e êxtase, Amante muito louca, ou mesmo Snuff. São filmes que dialogam com o gênero de uma perspectiva muito transversal. É possível pensarmos até que ponto seu recorte não induz um olhar que não é hegemônico dentro do gênero. Por isso, acho mais interessante dizer que o filme de Fernanda reflete sobre o “cinema popular brasileiro” do que propriamente sobre o gênero da “pornochanchada”.

Vemos esses filmes dialogando com o espírito de sua época, mas inevitavelmente os vemos aos olhos de hoje. O que nos surpreende nessa revisão dos filmes populares dos anos setenta é a atualidade desses filmes. A crise econômica, o desemprego, os paradoxos da burguesia, a covardia da classe média brasileira, a ameaça do fim da Petrobrás, são temas, entre outros, que poderiam ser tratados como hoje. A distância do tempo talvez nos faça perceber que talvez os filmes dos anos setenta retratassem melhor o Brasil de sua época do que os filmes de hoje. Ou ainda, será que os principais “filmes populares brasileiros” (as comédias da Globo Filmes) falam do nosso momento histórico como os filmes dos anos setenta, e que só perceberemos isso daqui a quarenta anos?

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