O Céu está Azul com Nuvens Vermelhas
Visto em 2022, aquilo que aqui soa inofensivo, em 2006, exibido em Tiradentes, causou celeuma
Por Marcelo Ikeda | 25.01.2022 (terça-feira)
Visto de hoje, em pleno 2022, o delicado e minimalista O céu está azul com nuvens vermelhas parece um filme inofensivo, mas, quando foi exibido na Mostra de Tiradentes em 2006, o filme despertou uma certa celeuma. Naquele momento, parecia incompreensível para alguns exibir um filme como aquele numa sala de cinema (ainda que numa tenda rs) ou numa mostra de cinema “respeitável”: era um filme cujos procedimentos destoavam frontalmente do projeto do “cinema da retomada”, em termos de roteiros com uma proposta direta de comunicabilidade que abordassem, de forma direta, a identidade perdida de um país, realizados com editais públicos que mostravam um esforço de produção, num projeto de industrialização e profissionalização do setor. Muitos dos jornalistas que cobriam o evento, especialmente os oriundos da imprensa escrita, atacaram o filme como meio de questionar a curadoria como era possível um filme como aquele ser selecionado para a Mostra de Tiradentes.
É importante falar desse contexto histórico para esboçar a importância desse filme, e o papel da Mostra de Tiradentes na projeção de novos valores curatoriais de renovação do cinema brasileiro do período, em torno do que muitos chamaram de “novíssimo cinema brasileiro”. O céu é composto de duas camadas: na primeira, totalmente passada no interior de uma casa, uma mulher divide sua rotina com três homens: seu esposo, seu irmão e seu pai. Na segunda, o filme colhe depoimentos num parque em Belo Horizonte, perguntando a passantes qual seria a cor do amor: vermelha ou azul.
No nosso momento atual de profusão dos chamados “filmes de pandemia”, é curioso vermos a primeira parte de O céu, totalmente filmada no interior de um apartamento. Essa certa claustrofobia, reforçada por planos fechados e pela quase total ausência de diálogos entre os personagens, expressa um desejo de olhar para um interior. No entanto, esse intimismo não está ligado à interiorização de base psicológica (à la Bergman) nem tampouco aos elementos mais típicos da “dramaturgia do comum” de base realista. Ainda que o filme esteja bastante contaminado de um desejo de comum, O céu não apresenta cenas de descrição realista da rotina da personagem, mas as situações são criadas quase como esquetes independentes, sem progressão narrativa, mais próximas de uma fenomenologia do instante que se aproxima de procedimentos da videoarte.
É preciso destacar a influência da videoarte nesse filme, seja pelo diálogo com os trabalhos anteriores de Dellani em seus curtas-metragens seja pelo próprio papel da videoarte mineira nesses primeiros filmes (como se pode ver claramente nos agradecimentos ao final do filme, que cita artistas como eder [Eder Santos] e marcelão [ Marcellvs L.], referidos de forma afetiva). Dellani utiliza alguns procedimentos típicos da videoarte, como a manipulação cromática dos planos (como a saturação ou a superexposição) e um desejo de lidar com o atores muito mais como um campo de presença performática do que com um desejo de composição de personagens oriunda do ator clássico. Um exemplo dessa fuga de uma abordagem de dramaturgia do comum com base realista é quando o irmão joga água em pequenas pedrinhas no canto de uma banheira. Ou quando dois personagens se sentam para cortar braços e pernas de pequenos bonequinhos de plástico. Ao mesmo tempo, há momentos mais realistas dessa dramaturgia do comum, quando os personagens cozinham ou lavam pratos. A água é um elemento muito próprio do filme (chuva, banhos, louça lavada). Ao mesmo tempo, o filme é impregnado de uma forte melancolia, dominado pelos silêncios, pelos tempos largos, por uma certa afasia que não expressa necessariamente um tédio nem uma falta de perspectivas mas um desejo de reinventar uma poética do cotidiano por meio de uma tendência quase ritualística. O punk Dellani Lima atravessava sua fase mais zen. O céu é um de seus filmes mais delicados, preenchido por uma ideia do cinema-xamã, algo que Dellani veio desenvolver posteriormente em um texto de 2014 escrito para a mostra Cinema de Garagem. Nele Dellani defende um cinema poético que busque “o sonho como meio de acessar a essência das coisas”. De fato, O céu parece transcorrer como um sonho, por seu desejo etéreo, enfatizado pelas transições com fades suaves em branco, como se o filme fosse atravessando por espessas nuvens de algodão, além da superexposição das imagens. Essa supexposição, acentuada pela saturação, é curiosa, pois Dellani realiza um filme silencioso e enclausurado mas bastante iluminado. Essa luz que invade o filme é que nos permite afirmar que O céu transcende sua suposta melancolia para buscar uma outra forma de habitar o mundo, em que essas esquetes performáticas sugerem um certo estado de busca interior mas também um equilíbrio, uma forma de paz. Há um momento bonito quando os personagens disputam uma partida de futebol com um pequeno campo de madeira com tachinhas e a bolaé ua moeda empurrada por petelecos. Ou ainda quando fazem bolhas de sabão na sacada. Uma proposta do jogo ou da brincadeira como forma lúdica, quase como um desejo de voltar a ser criança, mas também uma outra abordagem do tempo como matéria (o que há para ser observado nesses planos, mais do que os gestos dos corpos dos personagens é a própria passagem do tempo). Por isso, o Céu destoa em outros pontos dos procedimentos típicos da videoarte, especialmente, a meu ver, por uma vontade de propor um tempo cinematográfico, que projeta outros modos de ser, na pesquisa por esse certo xamanismo.
Trancafiada no interior do apartamento, essa personagem feminina, protagonista do filme, vê a cidade quase como ameaça, vista apenas de planos ponto de vista do interior do apartamento, como blocos de concreto fechados que parecem ameaçadores desse certo estado de paz. No entanto, misteriosamente, uma segunda camada abre o filme não apenas para a cidade mas para o encontro com outras pessoas. O filme vai a um parque público de BH e cria um dispositivo em que pede a pessoas comuns a darem seus depoimentos, em posição de close frontal, diante da câmera, com um longo pano às suas costas, relativo à cor escolhida, disposto como um background, se a cor do amor é azul ou vermelha. A heterogeneidade das pessoas escolhidas confere ao filme um tom até mesmo popular, mas um popular que foge do popularesco ou do demagógico. Ao mesmo tempo, vemos um recuo que registra a produção desse mesmo dispositivo: por meio de um grande plano geral, vemos a atriz abordar os transeuntes para ver se topam dar seus depoimentos. A atriz se transforma do personagem performático para uma espécie de assistente de produção. E a maior parte dos momentos selecionados mostra um fracasso: com certa timidez, ela aborda as pessoas, que se vão. Acho muito bonita a forma de como o filme mostra a simplicidade (ou a precariedade) de seu próprio modo de produção (o processo de o próprio filme ser feito) e como encena a sua própria dificuldade de travar um contato com o outro. De todo modo, é bonito o gesto de Dellani de romper com a zona de conforto da encenação de sua ritualística performática restrita ao interior do apartamento e buscar travar contato com as pessoas mais diversas num espaço público.
É curioso que o filme de Dellani na época tenha suscitado reações tão raivosas, visto que se trata de um filme delicado e até certo ponto despretensioso. Essa sua leveza zen, essa ausência de uma suposta pretensão, é que curiosamente incomodou os críticos. Mas sua falta de elementos típicos de comunicabilidade não significa que se trata de um filme hermético, pelo contrário. De todo modo, sua exibição ali em Tiradentes foi um gesto provocativo lançado por uma curadoria audaciosa, que apontou para a possibilidade de outros modos de produção e para outros modos de ser. Dellani fez muitos outros filmes mas o reconhecimento de sua vasta filmografia ainda não teve o seu devido reconhecimento. Quinze anos depois, passado o furacão desse contexto de disputas no interior do campo do cinema brasileiro, O céu pode ser apreciado por sua delicadeza zen (mas não sem conflitos, ainda que sutis), pelos seus mergulhos em silêncio (a vida como uma bolha de sabão), por sua tentativa honesta de sair de sua zona de conforto e tentar conversar com as pessoas, ou seja, pela sua forma sincera, delicada, imperfeita e pobre (imperfeito no sentido de Julio Garcia Espinosa e pobre no sentido de Grotowski) como se oferece ao mundo.
0 Comentários