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Festivais

Sábado à Noite

O esvaziamento da velocidade do funcionamento da cidade.

Por Marcelo Ikeda | 27.01.2022 (quinta-feira)

– texto originalmente escrito como parte do livro Fissuras e fronteiras: o Coletivo Alumbramento e o cinema contemporâneo brasileiro

Entre as mais importantes obras audiovisuais cearenses de meados dos anos 2000, estão três frutos do edital DOCTV: Vilas Volantes – o verbo contra o vento (2006), de Alexandre Veras; Sábado à noite (2007), de Ivo Lopes Araújo; Uma encruzilhada aprazível (2007), de Ruy Vasconcelos, todos produzidos pelo Alpendre.

Sábado à noite é um entroncamento entre Vilas volantes e Uma encruzilhada aprazível. Ao mesmo tempo, é possível afirmar que Ivo radicaliza alguns dos pressupostos de desconstrução do documentário de formato mais tradicional já apontado por Vilas volantes. Ou seja, se Vilas abriu uma porta para o cinema contemporâneo cearense, Sábado à noite a escancarou.

Por outro lado, ao contrário dos dois, Sábado à noite é um filme de dispositivo, guiado pelo papel do acaso. Uma equipe de filmagem (liderada por Armando Praça, que recebeu os créditos de “abordagem e sedução”) indaga a pessoas comuns na rodoviária de Fortaleza, num dia comum de sábado à noite, se aceitam que uma equipe (na verdade, três pessoas: além de Armando, Ivo – diretor e câmera – e Danilo Carvalho – som) poderia segui-los pela cidade de Fortaleza, apenas para acompanhar o que estavam fazendo. Assim, o filme seguiria por uma noite de sábado na cidade, guiado por encontros fortuitos e casuais. O papel do acaso iria guiando a equipe de encontro em encontro, até que o sol nascesse no dia seguinte.

Sábado à noite é todo feito de encontros fugazes. Nada de especialmente importante ou original acontece nessas horas. Assim, o filme irá desconstruir as expectativas que se criam com um filme e com um dia de sábado à noite, período geralmente associado a festas, agitação e badalação. A cidade de Fortaleza parece fantasma. O filme esvazia qualquer expectativa de narratividade.

Sábado à noite é costumeiramente associado às sinfonias das cidades, comuns no cinema dos anos 1920/30, como Berlim, sinfonia de uma cidade (1927), de Walter Ruttmann, o brasileiro São Paulo, sinfonia da metrópole (1929), de Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny, ou mesmo O homem com a câmera (1929), de Dziga Vertov.

No entanto, esses filmes dos anos 1920 despertavam um elogio às transformações da cidade urbana com o processo de industrialização, que se tornava cada vez mais cotidiano e corriqueiro: os arranha-céus, a grande difusão dos automóveis. A cidade era grande, funcionava como um autômato, como o símbolo máximo do progresso e da modernidade.

Já o filme de Ivo esvazia a velocidade de funcionamento da cidade e sua relação com a eficiência, modernidade e progresso. O que se vê é um olhar profundamente pessoal, que descamba para a melancolia e para a solidão. O dispositivo arranjado pelo filme supostamente valorizaria os encontros possíveis, guiados pela lógica do acaso. No entanto, há poucos encontros ao longo do filme, mesmo entre a equipe. Como bem afirmou Ilana Feldman (2012), é como se o dispositivo do encontro fosse um mero pretexto, e num determinado momento presenciamos o fracasso desse dispositivo. O fracasso de um grupo em se conectar com a cidade, o fracasso em trazer à tona alguma dimensão humana que se esconde por trás do concreto. Num texto que escrevi à época (ler aqui), afirmo que o único verdadeiro encontro do filme se dá com as pombas, no meio da Praça do Ferreira, ao amanhecer do dia. Mas até as pombas fogem do contato da câmera, elas voam, naturalmente assustadas.

Logo no início do filme, na rodoviária, a câmera permanece por um longo tempo em close, acompanhando uma bonita jovem que fala ao celular. Não sabemos o que ela fala, nem o contexto da ligação, apenas que ela parece aflita. Ela percebe a presença da câmera mas não responde diretamente ao seu olhar. Há um jogo de sedução, uma tentativa de estabelecer uma aproximação como uma espécie de flerte. Talvez a câmera seja por demais invasiva. O prolongamento da duração do plano em close nos causa um incômodo. Até o momento em que ela sai de quadro e a câmera desiste dela. Esse talvez seja o mais radical gesto – quase desesperado – de tentativa de encontro que, como várias outras, fracassam.

Talvez o mais sintomático gesto que afirme o desejo de pertencimento e a distância da afetividade seja quando vemos Danilo Carvalho gravando sons da cidade em cima de uma ponte deserta, e o filme subitamente corta para um plano do mar. A total desconexão entre os dois planos preenche uma enorme e distante ponte entre a cidade real e a desejada. É quase como uma versão do famoso corte de 2001 – uma odisséia no espaço (1968), em que Kubrick corta da pré-história para o mundo espacial. Sábado à noite é sobre a tentativa de ouvir esse mar, que nunca vem.

Quando a câmera finalmente consegue encontrar pessoas que “topam” participar desse estranho dispositivo, a aproximação que se estabelece é tímida, distante. A câmera é meramente observacional, sem nenhuma intervenção direta da equipe nos acontecimentos. Não há conversas ou entrevistas. Um casal se senta numa lanchonete e assiste Supercine; um grupo de meninos caminha pelas ruas escuras, aparentemente sem rumo; uma família permanece em casa, sem muito o que fazer. São pequenos esboços de micronarrativas que se insinuam, que surgem com alguma potência mas que acabam não gerando propriamente um desdobramento ou desenvolvimento narrativo. Praticamente não há som verbal; não há interação direta dos realizadores com as pessoas. É como se durante a noite escura pequenos vagalumes surgissem para logo desaparecerem.

A sensação de solidão e de esvaziamento se intensifica com a opção do preto-e-branco. Rompendo com o naturalismo, o tom monocromático exacerba o tom formal da obra. Diante dos naturais ruídos visuais e sonoros da cidade, busca-se um rigor formal, uma certa harmonia por trás do caos. É curioso como, a partir de uma câmera na mão, e que não é de alta resolução, Ivo consegue extrair uma poesia formal para os pequenos cantos da cidade que passam despercebidos, sob uma ótica de uma dramaturgia do comum. É criativa a busca de uma combinação orgânica entre o desejo de uma precisão para a construção do olhar, especialmente por meio da posição da câmera e da composição do enquadramento cinematográfico, e do tom de improviso, ligado à lógica do acaso que rege o dispositivo. Por trás da camada da solidão da cidade e do fracasso do dispositivo, o desafio do filme é combinar um certo rigor de composição visual com a surpresa do acaso, do inesperado, do incontrolável.

Numa certa camada, Sábado à noite é um olhar pessoal sobre o esvaziamento da cidade de Fortaleza. Contrasta radicalmente com a visão turística da cidade em festa e agitação, ao mesmo tempo que rompe com a representação da cidade como símbolo do progresso e da modernidade. O cineasta busca uma tentativa de encontro mas fracassa diante do vazio e da solidão da cidade, que o engole.

No curta Sabi (2010), que dirigi com Dellani Lima, acompanho um momento da montagem de Sábado à noite que exemplifica os desafios da montagem do filme. Ivo está sentado na ilha de edição com Alexandre Veras, que funcionou como uma espécie de consultor e, ao final, coassinou a montagem. Ivo mostra a Alexandre um plano logo no início do filme, quando a câmera segue um ônibus que transita por uma avenida da cidade. O plano é bastante longo, e Alexandre pergunta porque o plano não é “picotado”, transformando o mesmo plano em três, por meio do uso de jump cuts – e faz questão de pontuar que a pergunta não representa que ele prefira uma opção a outra, mas que pergunta para entender melhor as opções do realizador. Ivo simplesmente responde que não, de forma monossilábica, deixando a entender que o plano de longa duração é a base do filme.

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