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Festivais

Ventos de Valls

Um documentário contemporâneo, pelas micropolíticas e pelos pontos de vista na 1ª e 3ª pessoa.

Por Marcelo Ikeda | 27.01.2022 (quinta-feira)

Ventos de Valls é um entre os títulos da Mostra 25 anos que ilumina certos aspectos bastante em voga no cinema brasileiro de meados dos anos 2000 mas ao mesmo tempo trata-se de um filme muito pouco exibido. Na ocasião de sua estreia da Mostra, na edição de 2013, seu diretor, Pablo Lobato, era um dos membros da Teia, coletivo mineiro que está entre os mais importantes nesse movimento de renovação do cinema brasileiro a partir de meados dos anos 2000, com filmes de fundamental importância nesse contexto, como O céu sobre os ombros, de Sérgio Borges, e Girimunho, de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr. Lobato já havia realizado, junto com Cao Guimarães, o belíssimo Acidente, fruto do edital DOCTV. Ainda, Lobato possui uma trajetória artística com uma forte relação de trânsito entre o cinema e as artes visuais. Ventos de Valls foi fruto de uma bolsa da Fundação Guggenheim para desenvolver uma pesquisa em aberto. Assim, Lobato viajou com sua esposa e filha para uma região no interior da Catalunha, na Espanha, em que seis irmãos, parentes de sua esposa, reencontravam a casa em que moravam quando crianças, e que tiveram que fugir da ditadura de Franco, emigrando para o Brasil, mais precisamente para Resplendor, no interior de Minas Gerais.

Ao chegar a Valls para descobrir o que filmar, Lobato percebeu que essa própria viagem era o filme. Ou seja, Lobato filma o reencontro dessa família com sua identidade local, algo que me faz lembrar, a grosso modo, do belo gesto de Jonas Mekas em Reminiscências de uma viagem a Lituânia. Os irmãos, já idosos, agora reunidos, relembram os acontecimentos da infância, anotam as músicas que os aqueciam, caminham pelos arredores da casa, cobertos pelo mato. Ventos de Valls se constrói assim sem roteiro ou estrita pesquisa prévia, menos preocupado com informações sobre o contexto político ou histórico da imigração ou da ditadura franquista mas mais voltado a mergulhar nas possibilidades desse encontro com o presente e com a materialidade da casa, em despertar uma sensibilidade sobre esse reencontro sentido no presente, mas que, ao mesmo tempo, resgata um passado e uma memória distantes, que teimam em não serem apagadas, reduzindo essas distâncias.

Valls é um documentário contemporâneo não apenas por esse gosto pelo processo e pelas micropolíticas, mas por esse delicado ponto de vista que imbrica a primeira e a terceira pessoa. Lobato é, de certa forma, um estrangeiro a filmar essa família reunida. As memórias não são as dele. No entanto, ele está fortemente imbricado no filme, não apenas porque trata-se da família de sua esposa mas porque Lobato propõe uma ponte entre o sentimento de retorno dessa família de irmãos com a descoberta de um mundo pela sua filha de Ana, ainda criança, com cerca de 4 ou 5 anos. Entre essa família que é outra mas também que é a dele, entre esse país estrangeiro, Lobato transmite ao espectador essa posição delicada que é tentar retornar a um lugar que nunca se foi. Assim, vejo Vento de Valls como um filme de aventuras, porque esse lugar para o qual esses idosos retornam é um lugar outro, cujo vazio e silêncio precisam ser preenchidos por suas memórias. Se esses velhos “voltam a ser crianças”, com suas brincadeiras, jogos, andanças, de outro lado, existe Ana, a filha do realizador. Esse passado e futuro convivem a partir do presente e da materialidade da casa e da câmera do realizador, cuja posição está nesse equilíbrio precário entre a primeira e a terceira pessoa. Essa é a poética de Ventos de Valls. Ainda são muitos os preconceitos em torno do “filme de família” e o “documentário de busca”. Mas para os que possam rotular o filme como meramente autocentrado em torno de uma simples viagem familiar, melhor resposta é a bonita sequência em que todos vão à praça principal da cidade assistir a uma tradicional apresentação, em que grupos de pessoas formam pirâmides humanas, entre homens e mulheres, crianças, adultos e idosos, vendo quem chega mais alto, quem resiste mais. As mãos e corpos das pessoas que formam esse espaço de comunhão e de prosseguimento das tradições simbólicas do local são entrecruzados pelos corpos e olhos do público que se aglomera em torno do local. O indivíduo, a família e o coletivo se entrecruzam por meio dessa apresentação, que é também, assim como o cinema, uma forma de cultura e de arte.

Mas o cinema brasileiro é um campo de batalhas, e naquele momento de 2013 interessava a alguns críticos tentar rotular uma certa produção do cinema brasileiro, apontando para um suposto esgotamento do cinema em primeira pessoa e dessa poesia do comum e da rarefação. Entre outros veículos, especialmente a Revista Cinética, bastante influente no momento, já havia escrito outros textos e artigos problematizando a produção da Teia como um todo, e de alguns filmes em particular. Entre eles, destaco um texto bastante duro sobre Notas Flanantes, de Clarissa Campolina, ou ainda um artigo sobre uma retrospectiva da Teia no Cine BH. No ano anterior da Aurora, Balança mas não cai, de Leonardo Barcelos, parecia ser um alvo fácil nesse discurso do suposto esgotamento de certos recursos estilísticos oriundos da videoarte. Entendo que esse debate provocativo certamente foi bastante importante para desestabilizar a conformação de certos conceitos que já estavam quase engessados ou automatizados como construção simbólica de um “novíssimo cinema brasileiro” (especialmente uma certa ideia de “cinema poético”). No entanto, visto de hoje, também é importante perceber como esses discursos são elementos discursivos em torno das disputas de poder no interior do campo simbólico do cinema brasileiro, em que a legitimação da Teia e especialmente as heranças de certo cinema poético mineiro oriundo da videoarte começavam a ser problematizados por uma outra geração de cineastas mineiros, tão talentosos quanto a Teia, que surgiam com outros regimes de imagens e de modos de ser, e que também disputavam seu espaço, entre os quais estão a Filmes de Plástico e o cinema de Affonso Uchoa, entre outros diversos realizadores, como Leo Pyrata, Flavio Sperling, João Toledo, Leonardo Amaral, entre muitos outros.

Ainda que tenha recebido o prêmio principal da Mostra Tiradentes Edição São Paulo, Ventos de Valls permaneceu muito pouco visto desde então. Essa é então uma rara oportunidade para que um novo público possa assistir esse filme com “olhos livres”, reavaliando a fortuna crítica sobre esse filme. O filme de Pablo Lobato aponta para a contribuição da Teia nesse cenário de renovação do cinema brasileiro a partir de meados dos anos 2000 e sua íntima relação com toda a tradição da videoarte mineira, mas levada para um outro lugar, com um diálogo com um cinema contemporâneo internacional. Quando cheguei a Mostra de Tiradentes naquele ano de 2013, Ventos de Valls já havia sido exibido, e só puder ouvir os comentários a partir de terceiros, não tendo nenhuma outra oportunidade para ver o filme. Quase 10 anos depois, pude finalmente agora vê-lo e fui surpreendentemente tocado por esse vento desse lugar tão distante que se tornou um pouco mais próximo de mim.

p.s.: algumas informações sobre o filme foram baseadas no belo texto do crítico de cinema mineiro Paulo Henrique Silva sobre o filme, escrito ainda em dezembro de 2012, antes de sua primeira exibição, que permanece disponível. Para acessá-lo clique aqui.

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