Roterdã, IFFR (2022) – Malintzin 17
Filme de Eugenio Polgovsky presente na mostra Tiger Competition
Por Marcelo Ikeda | 12.02.2022 (sábado)
Malintzin 17 (México, 2022, 64 min) se desenvolve integralmente no espaço de um pequeno apartamento, no endereço anunciado pelo título, em um bairro de classe média da Cidade do México, a partir de um mote: a filha do realizador Eugenio Polgovsky descobriu, pela janela, um ninho de pássaros fragilmente equilibrado em uma caixa de um poste de luz. À medida que Eugenio e sua pequena filha observam o destino da mãe-pássaro que choca seus ovos, o tempo passa. Malintzin 17 deve ser visto por uma dupla perspectiva: de um lado, é um filme-diário, como uma crônica de costumes do cotidiano de um pequeno bairro no México. Ainda que as imagens sejam de um período anterior, pensamos em um “cinema da pandemia”, uma vez que o filme é totalmente filmado por uma câmera empunhada pelo próprio realizador no interior de seu apartamento. Trata-se, portanto, de um filme de simples realização, em que temos basicamente um cineasta e uma câmera na mão, filmando o seu próprio cotidiano, no interior de sua casa. Mas não se trata apenas do mundo interior do cineasta e de seus devaneios dubjetivos. A curiosidade do realizador pelo que existe para além de sua janela permite que o filme incorpore um certo movimento de mundo, quase aos moldes do cinema dos Lumières, mas adaptado ao digital. O movimento das pessoas na rua introduz sutilmente alguns elementos sobre a própria cidade. Os elementos da modernidade, como os carros e aviões, convivem com outros mais tradicionais, como pregoeiros que anunciam a venda de seus produtos em pequenos carrinhos artesanais. Esse contrate de perspectivas espelha a própria situação frágil dessa família de pássaros que tenta sobreviver diante das transformações da cidade. Pai e filha conjecturam que a mãe pássaro resolveu se arriscar naquele poste de luz porque uma árvore ao lado acabara de ser derrubada. Exposta a sol e chuva, a mãe-pássaro protege seus filhos-ovos até acabar de chocá-los.
Enquanto isso, pai e filha observam, por meio da janela e da câmera de cinema, em seu ninho-apartamento. Daí surge a segunda camada de Malintzin 17: a de um filme-de-família, calcado na relação entre pai e filha. A profissão do pai permite que ele viva observando os pequenos movimentos do mundo, que poucos dão atenção, e convive a sós nesse apartamento com a filha (não vemos a mãe). O tom lúdico da contemplação cotidiana do mundo confere ao filme um tom infantil, como se as crianças fossem uma forma privilegiada de resgatar uma certa inocência perdida, ou adormecida. É notável que esse filme caseiro, totalmente filmado por Polgovsky, aponte para esse aspecto artesanal do cinema, que, por meio dos recursos do filme-diário, ilumine outros modos de ser para além do trabalho como mera reprodução do capital. O trabalho do cineasta é, sobretudo, observar o movimento do mundo e nos despertar para uma experiência sensível diante das coisas aparentemente simples que estão ao nosso redor e que não nos damos conta. A filha interage com o pai, refletindo sobre o destino dos pássaros e o movimento do mundo.
Mas ainda há outra camada que ressignifica esse pequeno singelo filme. O filme não é apenas de Eugenio Polgovsky mas também se sua irmã Mara. Isto porque Mara encontrou essas filmagens entre o material de seu irmão, após sua morte súbita, aos quarenta anos. Malintzin 17, portanto, não é o filme acabado de Eugenio, mas foi realizado a partir de um material (ou seja, um found footage) encontrado por sua irmã. Mais que um filme homenagem a esse artista que se foi de forma prematura, esse gesto é mais um entrecruzamento familiar dessa irmã que se aproxima dessa intimidade do irmão e da sobrinha.
Não sei porque mas, ao final de Malintzin 17, lembrei de O sol do marmeleiro (1992), obra-prima de Victor Erice. O filme mostra o cotidiano de um artista cuja rotina diária é filmar um pé de marmelo que cresce no quintal de sua casa. Penso que esse é o desafio de Polgovsky: seu ofício como artista é pintar com a câmera o cotidiano desse ninho que cresce, e que, mesmo que de forma frágil e solitária, consegue tomar vida. É o que acontece com o próprio filme de Polgovsky: esse misterioso movimento de ganhar vida que acontece talvez também com as próprias obras de arte. Mas, ao final, assim como o filme fica pronto, os filhotinhos nascem e a família pássaro deixa o ninho. Não sabemos qual será o destino da filha de Eugenio – ela agora parece livre para voar, sem pai nem filme. O que será dela talvez nunca saberemos: a pequena menina agora cresceu e voou para o extracampo.
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