Roterdã, IFFR (2022) – O Pássaro de Prata…
“Silver Bird and Rainbow Fish”, do chinês Lei Lei, na Mostra Tiger Competition
Por Marcelo Ikeda | 12.02.2022 (sábado)
O Pássaro de prata e o peixe arco-iris (Silver Bird and Rainbow Fish, EUA/Chi., 2022) – Mostra Tiger Competition – O realizador chinês Lei Lei conversa com seu pai sobre os aspectos trágicos que envolvem a história de sua família. Ainda pequeno, o pai de Lei teve que cuidar da irmã e da mãe doente, enquanto seu pai (o avô do realizador) ficou confinado como preso político na China nos anos 1960 por sua atividade contestatória ao regime. O profundo drama dessa família partida do interior da China é revelado por meio de uma longa conversa entre pai e filho, gravada de forma informal, muito distante de uma entrevista, pelo tom afetivo impresso nas declarações. Por meio dos recursos do documentário em primeira pessoa, somos apresentados a um outro lado da história oficial chinesa, vista pelo lado dos oprimidos pelo regime autoritário.
No entanto, a conversa familiar nos é revelada apenas pelo áudio. Em nenhum momento, vemos as imagens filmadas desse encontro tão íntimo. Ao mesmo tempo, como é possível mostrar em imagens a dor desse tempo passado, uma vez que poucos materiais sobreviveram? Assim, Lei Lei compõe a banda visual por meio de uma criativa recriação do ambiente dos acontecimentos, por meio da combinação de dois elementos. Com base em fotografias de época, mantidas pela família, o realizador promove interferências nesse registro real, por meio de colagens ou mesmo de recursos técnicos do cinema de animação. As interferências multicoloridas em movimento oferecem um contraste às estáticas fotografias de época em preto-e-branco, e inserem um certo aspecto lúdico infantil, como um resgate à possibilidade de vida e beleza mesmo diante das condições tão trágicas.
Em certa medida, os recursos de Lei Lei nos fazem lembrar das opções de Rithy Panh em A imagem que falta (2013). Nesse filme, o cineasta recria seu cotidiano num campo de trabalho forçado no Camboja sob o regime ditatorial de Pol Pot por meio de bonecos de argila, uma vez que as imagens que sobreviveram foram as fabricadas pelo próprio regime, não correspondendo às memórias afetivas por parte do realizador.
Assim, o documentário em primeira pessoa de Lei Lei assume um tom criativo, pois escapa dos procedimentos mais imediatos do cinema em primeira pessoa, encontrando uma expressão lúdica para resgatar os trágicos acontecimentos do seu passado familiar, por meio de um entrecruzamento entre as imagens documentais (as fotografias), o testemunho oral (sem imagens) e o cinema de animação, especialmente composto por bonecos de massinha colorida animados. O tom colorido remete ao universo infantil, colocando de certa forma a perspectiva do pai do realizador (o “entrevistado”), uma criança à época dos acontecimentos, mas também trata-se de um gesto, assim como o filme de Panh, que promove a sobrevivência do afeto e da sensibilidade mesmo diante das situações tão trágicas.
Talvez falte ao filme de Lei a maestria e a pungência do filme de Rithy Panh para dar corpo a esse tão potente projeto cinematográfico. Em certo momento, os recursos parecem se esgotar, e a montagem não consegue desenvolver as relações entre as camadas de imagem e a banda sonora de forma mais potente. Assim, ao final, faltou mais consistência ao projeto cinematográfico do realizador para provocar um impacto mais duradouro no espectador. Um filme não é composto apenas por intenções de realização, mas também de um trabalho ativo com a matéria-prima do filme, por meio dos elementos da linguagem cinematográfica, para que o filme em si se transforme para além de mero projeto e tome corpo, tendo autonomia para além do caderno de intenções e ganhe vida própria. De todo modo, é digno de interesse o projeto do filme de jogar luz sobre outras trajetórias na China comunista a partir de um drama familiar, retratado com delicadeza e utilizando de forma criativa os recursos do documentário em primeira pessoa.
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