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1 Comentário

  • Odécio Antonio

    Ótimo artigo.

  • Festivais

    Roterdã, IFFR (2022) – Paixões Recorrentes

    Ana Carolina Teixeira Soares e o seu misterioso “Paixões Recorrentes”

    Por Marcelo Ikeda | 11.02.2022 (sexta-feira)

    Em suas últimas edições, o Festival de Roterdã tem bem acolhido nossos cineastas que possuem uma longa trajetória consolidada, ligada ao cinema de invenção: em 2020, Ruy Guerra apresentou seu Aos pedaços e, no ano passado, Julio Bressane, exibiu Capitu e o Capítulo. Este ano foi a vez de Ana Carolina Teixeira Soares e seu misterioso Paixões recorrentes.

    Me interesso por aproximar esses três filmes, de realizadores com trajetórias tão diferentes mas ao mesmo tempo próximas nesse gesto provocativo de pensar o Brasil por meio de uma linguagem radicalmente oposta às convenções do cinema narrativo comercial.

    Ao mesmo tempo, são três realizadores que vivem em um certo isolamento. Esses três filmes são exercícios radicais de personagens que se encapsulam. São filmes quase fechados por dentro, encapsulados em torno das obsessões criativas de seus diretores, mas com pouco diálogo entre as tendências estilísticas do cinema contemporâneo brasileiro ou mundial.

    Alguém poderia dizer que são filmes voltados para dentro do universo próprio de seus realizadores e que dão as costas ao mundo. Mas as relações entre estética e política muitas vezes são misteriosas, de modo que há mais coisas entre o céu e a terra que a vã filosofia do reino da Dinamarca poderia suspeitar.

    Essa ambiguidade me parece ser o cerne desse projeto arriscado de Ana Carolina. O filme aparenta ser um huis clos teatral (apesar de ser filmado numa praia aberta) em que personagens-tipo discutem num pequeno bar numa ilha isolada do mundo, as tendências políticas entre a esquerda e a direita.

    Exilados, voluntariamente ou não, nesta ilha, os personagens não tem muito a fazer. Então só lhes resta jogar conversa fora. Mas não se trata da dúvida ética exposta por Godard em Os carabineiros/Tempo de guerra (1963), entre o “tempo da reflexão” e o “tempo da ação”. O filme possui uma veia tragicômica mezzo alegórica, própria da diretora, em que, num grande caldeirão, esse grupo, composto por personagens humanos com todas as suas dúvidas, vilanias e fraquezas, é assolado pela sombra do fracasso.

    Ao mesmo tempo, é claro o desejo da realizadora de transcender a estrutura psicológica, e forjar personagens-tipo que espelham um certo microcosmo do Brasil. Os personagens interessam menos em sua psicologia e mais para os seus tipos: a francesa comunista, o negro brasileiro anarquista, o pequeno comerciante brasileiro integralista, o empresário liberal, o argentino policial comunista, o português salazarista, etc.

    Em grande parte do filme, esses personagens conversam nesse bar enquanto como mero passatempo, esperando por algo que eles não sabem bem o que é. Algumas subtramas se arremedam, como um português que vai à ilha em busca de sua amada, uma francesa artista com seus projetos de fama no teatro e seus conflitos com um empresário oportunista, um policial besta-fera que ameaça os visitantes, o roubo dos colares, etc. No entanto, Ana Carolina parece mais à vontade em destilar os diálogos dos personagens no bar. Suas origens são distintas, de modo que o filme é falado em várias línguas (francês, espanhol, português de Portugal e português brasileiro), ainda que todos se entendam. A influência estrangeira na formação da identidade brasileira dialoga com outros trabalhos da realizadora, como Amélia (2000). As posições políticas também são distintas, num amplo espectro entre a direita e a esquerda. Nesse bar isolado, integralistas, comunistas, liberais, anarquistas dividem a mesma garrafa de aguardente. Esse convívio pacífico, essa certa cordialidade, mascara as tensões, as opressões e os poderes locais.

    Esse é o teatro Brasil, numa ilha longínqua (a Ilha do Mel, mas que bem poderia ser a Ilha de Vera Cruz, berço mítico da origem brasileira). Os personagens recitam seus frágeis papeis de personagens-tipo nesse grande palco de teatro de comédia de costumes. A estética teatral de Paixões recorrentes parece ser, um pouco a grosso modo, como Os inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade, um modo de expor o comportamento dos personagens como um deslocamento do mundo.

    Enquanto isso, tudo parece estar próximo a explodir. Ao final, a cineasta revela que desponta a Segunda Guerra Mundial. Lembramos que a política vem da origem do cinema de Ana Carolina, quando realizou o documentário Getúlio Vargas (1974) – o estadista é citado longamente em uma dessas conversas, com os personagens já bêbados. Parece claro que a realizadora procura sugerir um possível paralelo com o atual momento político do mundo mas especialmente no Brasil em que os totalitarismos ressurgem. Ao mesmo tempo, parece ser muito confortável que esse grande microcosmo do Brasil seja encenado em plena paradisíaca Ilha do Mel, como um huis clos teatral em que uma equipe veterana filma como se num grande resort. Meu interesse por Paixões recorrentes surge a partir desses paradoxos, por uma cineasta que sempre viveu nesse entremeio entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal: uma vontade imensa de falar sobre a identidade de um país mas desconstruindo os discursos narrativos, ainda que com uma proposta de um cinema moderno. Há um nítido desejo de cinema, em como a decupagem procura criar ritmos e climas mesmo dentro da aparentemente limitada estrutura semiteatral. O clima farsesco e de mosaico impelem a identificação do espectador com os personagens. Nesse teatro farsesco político, o Brasil é a resultante desigual desse caldeirão de culturas que não converge para um projeto comum, mas para suas contradições e vilanias. E que no fundo apontam para um grande esvaziamento e uma profunda solidão. Solidão essa que se expressa no próprio cinema de Ana Carolina e da relação de sua proposta de mise en scène com o mundo. Paixões recorrentes é um filme estimulante, que merece uma melhor revisão fora da maratona de um festival internacional. Mas, após essa primeira visão, resta a pergunta: como é possível que um teatro farsesco político não caia nas armadilhas do ensimesmamento e possa abraçar de fato o mundo, com suas imperfeições mas com suas belezas?

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