27º É Tudo Verdade (2022): O Filme da Sacada
Estamos no campo do documentário contemporâneo, em torno do prosaico e das dramaturgias do comum
Por Marcelo Ikeda | 03.04.2022 (domingo)
Em O filme da sacada, o cineasta Paweł Łoziński realizou um documentário composto de pequenas conversas com pessoas que passam pela calçada em frente à janela de seu apartamento na Polônia. Alguns são desconhecidos que ele interpela; outros são vizinhos com quem ele não tem muito contato.
Estamos, portanto, no campo do documentário contemporâneo, em torno do prosaico e das dramaturgias do comum. Com uma câmera e um microfone, é possível fazer um filme sobre o movimento do mundo, mesmo sem sair de casa. Pensamos, nesse ponto, em filmes brasileiros como Da janela do meu quarto, de Cao Guimarães, ou em Aterro do Flamengo, de Alessandra Bergamaschi. Penso também no belo Malintzin 17, que passou recentemente no último Festival de Rotterdam.
Algumas vezes, a composição do enquadramento ou a forma inesperadamente acabada como as pessoas entoam determinadas frases parece nos passar a impressão de que certos trechos foram encenados para a câmera. Mas no fundo não importa tanto se foram ou não. O mundo, muitas vezes, de forma inesperada, irrompe diante de nossos olhos por meio de uma certa harmonia discreta que se assemelha a um filme de ficção. Se o regista final é Deus ou Lozinski, é algo que nem os melhores peritos poderão precisar.
Estamos diante, portanto, de um certo ramo do cinema contemporâneo que revaloriza o comum: esse gesto (que talvez só seja possível porque havia uma câmera) de se aproximar das pessoas e estabelecer um contato. Nessas pequenas conversas, o cineasta pretende extrair o sentido da vida, alguma angústia ou alegria, alguma motivação profunda. Seria possível extrair algo profundo a partir de uma conversa corriqueira estabelecida por um dispositivo tão leve?
Esse é o maior desafio do filme de Lozinski. Seu maior mérito é seu tom prosaico: as conversas se desenvolvem com naturalidade e fluidez; há um certo humor que preenche o filme. O trunfo do filme é a insistência do cineasta. Ficamos com a impressão de que um gesto aparentemente banal, se repetido exaustivamente, com tenacidade e insistência, começa a produzir fissuras no mundo. As pessoas vão e vêm ao longo de meses, e passam a reconhecer o cineasta-sacadista. Mudam-se as estações do ano. Relações começam a se estabelecer por rodadas repetidas, e começam a surgir personagens. Dois deles em especial se destacam: um homem que acabou de sair da prisão e tenta arrumar um emprego; uma senhora idosa solitária que trabalha no edifício limpando as folhas das árvores que teimam em se acumular. São dois pontos de certa forma tristes nesse infindável carrossel de vai-e-vem – e o filme não oferece nenhum conforto, nenhuma solução, nenhuma resposta. O máximo que o cineasta faz é ouvi-los – e, num certo ponto, Lozinski dá uma camisa social para o rapaz.
Não chega a ser um filme em primeira pessoa: não vemos o cineasta e ele pouco fala de si. Melhor seria dizer que o dispositivo do filme se baseia nessa relação entre o interior e o exterior, entre o cineasta e os passantes, ou entre o mundo e a câmera. O dispositivo relacional é uma forma singela elaborada pelo cineasta, por meio dos recursos do cinema caseiro, para desenvolver uma relação de encontro com o mundo e com as pessoas. Esse gesto de partir da observação do mundo para fazer um filme – algo que abre uma genealogia que surge do primeiro cinema, do cinema dos Irmãos Lumière.
No entanto, ao final, por trás de instantes de poesia do comum, resta uma certa sensação de platitude. O que de fato conhecemos dessas pessoas? E mais, faço essa provocação: por que adotar esse dispositivo de filmar as pessoas a partir de uma varanda/sacada? Por que Lozinski não desceu as escadas de seu prédio, e foi para uma praça, para as ruas, para conversar com as pessoas mais de perto? Sinto que as limitações desse encontro despontam a partir desse gesto tímido do seu realizador, ou talvez pela insistência no cinema-dispositivo, de modo que fiquei imaginando, apenas por um momento, um final em que Lozinski pudesse largar a câmera e abraçar sua esposa e filhos, ou ainda, que ele andasse pelas ruas e praças de Varsóvia. Pobre Lozinski, aprisionado pelo seu dispositivo! Ele não podia sair porque trabalhava! Pelo menos, ainda assim, mesmo acorrentado, ele pôde fazer um filme, motivado pela sua curiosidade e seu desejo sincero de conversar com as pessoas.
Ao fim, fico pensando que talvez essa opção de Lozinski expresse não apenas os riscos do fetiche do dispositivo mas uma certa malaise do mundo contemporâneo: nossa enorme dificuldade em nos mover, e que o “cinema das plataformas de streaming” (o filme é curiosamente financiado pela HBO max) acaba nos estimulando que é possível ter um amplo conjunto de experiências, tudo isso sem precisar sair de casa.
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