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Pantanal: ontem, hoje

De Pantanal 1990 a Pantanal 2022 é possível traçar uma involução na linguagem da nossa teledramaturgia

Por Luiz Joaquim | 08.05.2022 (domingo)

Em 1961, no Suplemento dominical de O Jornal do Brasil, Glauber Rocha escreveu:

”De Ganga bruta [1933, de Humberto Mauro] a A Primeira missa [1961, de Lima Barreto]) o cinema brasileiro involuiu violentamente.  (…) É criticamente que não se pode considerar A primeira missa em 1961 quando este é um filme mais antigo e mais incompleto do que Ganga Bruta – fita moderna de 1933, fita muda que rompeu a história e permanece válida, inclusive vanguarda. Armando-se uma ponte ao contrário do novo Humberto Mauro ao velho Lima Barreto – é possível traçar a involução da linguagem cinematográfica brasileira”.

É esta colocação, provocadora e sagaz do diretor de Deus e o diabo na terra do sol, que vem à cabeça quando nos deparamos com a nova versão para a novela Pantanal (2022), produzida pela TV Globo, reescrita por Bruno Luperi e com direção artística de Rogério Gomes e Gustavo Fernandez, em contraste com a Pantanal (1990) produzida pela TV Manchete, escrita por Benedito Ruy Barbosa, sob direção geral de Jayme Monjardim.

Não seremos radicais nas palavras como foi Glauber em sua comparação, mas passadas as quatro semanas iniciais da versão atual, é possível dizer com segurança, a despeito de toda a tecnologia que envolve a produção da TV Globo, que a novela encolheu em sua capacidade de encantamento pela exuberância que a natureza poderia proporcionar. E o problema não está na natureza – a região do Pantanal, apesar de muito maltratada nas últimas três décadas –, segue esplendorosa. O problema está em sua representação.

Alguém pode gritar que o aspecto do ineditismo do tema em 1990 era um trunfo da Manchete. Sim, mas um trunfo muito bem aproveitado.

A primeira versão dessa novela, que, nos anos 1980, foi renegada pela mesma TV Globo, quando seu autor lhe apresentou o roteiro, nas mãos da TV Manchete tornou-se um marco definitivo na teledramaturgia brasileira. Muito de revolucionário do que surgiria nas telenovelas da TV Globo após Pantanal deve-se a Pantanal. E o que estava por trás de todo esse êxito era a ousadia do projeto tocado pela emissora casada com a direção “sem cabresto” de Monjardim e sua equipe – além do primoroso enredo e texto de Benedito Ruy Barbosa.

De pé, Monjardim dirige Marzo (como o Velho do Rio)

Para começar, a TV Manchete decidiu sair do conforto de seus estúdios no Rio de Janeiro para gravar numa região inóspita, reconhecida pelos seus longos períodos de cheias. Era como uma paisagem virgem não apenas na perspectiva visual, mas também pela ótica da operacionalização de produção para um programa televisivo, que precisava fluir em velocidade industrial.

Quanto aos acertos de seu diretor geral, não nos referimos as muitas tomadas revelando o nu de seus atores/atrizes – que, claro, ajudaram na popularidade da telenovela –, e sim às mais variadas opções de se contar uma história fora de um estúdio… bem longe de um estúdio, na verdade.

Pantanal trazia atores não-famosos assumindo o protagonismo romântico, contextualizava as relações entre os personagens por meio de diálogos extensos, que valorizavam seu conteúdo (como uma conversa importante realmente costuma ser), e nos apresentava tudo isso por um ritmo lento, muito lento, fazendo absoluto sentido com aquele parado da região que serviu de locação à obra.

Longe dos estúdios: À direita, embaixo, Marcos Palmeira (como Tadeu) em set para uma cena romântica, cercado pela equipe de Monjardim.

A própria natureza era respeitada em sua beleza sonora na composição da dramaturgia. Apesar de a magistral suíte sinfônica composta para a trilha sonora por Marcus Viana ser muito bem aproveitada, não era raro termos os silêncios (ou, o som da natureza) servindo de background sonoro para as conversas de seus personagens, o que, obviamente, emprestava ainda mais autenticidade àquilo que era representado.

Havia, ainda, os supercloses no rosto dos casais apaixonados, banhando-se na beira do rio em Pantanal. A prática de tal enquadramento era impensável na telenovela brasileira de então, habituada aos fortes refletores de seus estúdios.

Da mesma forma, o deserto sonoro das locações pantaneiras permitia que o elenco, em cenas importantes na natureza, atuasse quase que sussurrando, o que convinha muito bem para as cenas românticas.

Era algo realmente novo o que se apresentava ali e o país inteiro foi desejando conhecer aquele paraíso.

Um ponto de inflexão na teledramaturgia sendo marcado sob os olhos de um país inteiro.

A propósito daquela localidade, a equipe de Pantanal passou os primeiros cinco meses inteiros no local das gravações. Depois disso, nos meses seguintes, dizia-se, inclusive, que, ao chegar no Pantanal, voltando do Rio de Janeiro, a equipe beijava o chão assim que descia do avião. Cada um, a seu modo, passou a reverenciar aquele lugar como sagrado.

Impossível não acreditar que tal imersão tenha sido definidora para a criação de seus atores. Ali, não se tinha muita notícia do mundo, inclusive do estrondoso e descontrolado sucesso do qual o trabalho começou a gozar quando foi ao ar (estreou em março de 1990) e, rapidamente, conquistou o país.

Até o então recém-empossado Presidente da República, Fernando Collor de Melo, declarava para a imprensa que fazia de tudo para não perder um capítulo das desventuras de Zé Leôncio (na época, Paulo Gorgulho/Cláudio Marzo), e, quando perdia a transmissão, via depois a gravação pelo videocassete.

Ao todo, a Pantanal da Manchete passou por 12 meses de gravações, com a novela ficando no ar por quase nove meses.

PANTANAL 2022 – Em três décadas, o comportamento social muda em diversas instâncias e não é raro encontrar algo que podia ser aceitável em 1990, mas não passaria em 2022, de modo que não faria sentido deixar de promover uma atualização no comportamento dos personagens sob pena de soarem anacrônicos. Pior, de soarem ofensivos, como, por exemplo, figuras masculinas gabando-se de sua masculinidade, ou de mulheres aceitando uma condição de submissão.

Mas a questão é: a antiga Pantanal já era moderna o suficiente para apresentar homens sensíveis, ainda que truculentos (como Zé Leôncio), e mulheres que não temem e não se curvam a nada (Maria e Juma Marruá). Em outras palavras, não precisava muito para recriar, no contemporâneo, esses tipos já clássicos.

A própria reverência à natureza feita pelo fazendeiro Zé Leôncio e pelo Velho do Rio (Cláudio Marzo) era também um bem vindo e já bem afinado tom com o que simplesmente é o certo a fazer: respeitar e cuidar do meio-ambiente.

Mas, talvez, a grande distância entre as duas versões não seja temporal e sim comercial. Enquanto o primeiro projeto nasceu despretensioso (ou com pretensões incertas, para ser menos ingênuo), o segundo surge a partir de um alvo a ser atingido, cujo dardo terá de acertar com precisão e, para isso, conta com todas as ferramentas científicas do marketing comercial.

Em termos cinematográficos, a velha Pantanal seria um filme autoral, realizado com absoluta liberdade, e que chegava no circuito exibidor timidamente, estreando em poucas salas de cinema. E que, pela sua audácia e competência, conquistaria crítica e público e, por isso, logo ampliaria seu circuito exibidor.

Em termos cinematográficos, “Pantanal” 1990 seria um filme autoral, de poucos recursos. Na imagem, Andrea Richa (Muda), Oliveira (Juma) e Winter (Jove).

Já a nova Pantanal anuncia-se como seria anunciado uma superprodução cinematográfica, vendendo-se como um arrasa-quarteirão mesmo antes de entrar em cartaz. E, uma vez lançando, estaria em mais de 50% das salas de cinema do país.

Mas o marketing não é uma questão aqui, pois ele só está fazendo bem o que é (muito bem) pago para fazer. A questão está no resultado da recriação de algo que possuía um grau de excelência em todas as instâncias. Daí seu sucesso no passado, tornando-se um ponto de inflexão na teledramaturgia brasileira.

O risco de refazer a novela seria alto. A TV Globo sabia e resolveu apostar. Entre deslizes e acertos, há, na nova versão, um excesso de tomadas aéreas, transbordando de seus drones, e cujo sentido narrativo esvaziou-se. Tomadas áreas hoje são muletas visuais, descartáveis. Há 30 anos elas revelavam uma paisagem pantaneira absolutamente virgem para mais da metade dos brasileiros e, no contexto do enredo, deixava claro que a imensidão da região atestava o grau de isolamento da turma do Zé Leôncio.

Enquanto a eloquência da Pantanal da Manchete residia, sem firulas, nos planos estáticos e no som ambiente dando conta daquela beleza toda, a pretensa eloquência da versão platinada – a julgar pelas quatro primeiras semanas – está nas contínuas câmeras em movimento indo em direção aos atores enquanto estes vêm no sentido contrário, ou mesmo seguindo o movimento delas.

E a atual trilha sonora… quanta insistência. Ouvir a natureza numa novela sobre a natureza seria bom. Não que a versão anterior não insistisse nas composições de Marcus Viana, mas ela (aquela trilha) agarrou-se rapidamente à novela e tornou-se um órgão necessário ao corpo dramático do todo.

 

Pelo aspecto dramatúrgico, a própria inicial despretensão da anterior Pantanal permitia que ela alternasse, sem pressa, uma larga apresentação daquele ambiente com a de seus personagens.

A consistência dos diálogos com os quais íamos conhecendo a história da família de Jove (Marcos Winter) e da família de Juma (Cristiana Oliveira) era densa, mas econômica, e por ela, pouco se duvidava do que nos era apresentado.

Na atual versão, o contrário disso pode ser percebido no núcleo dos avós maternos do personagem de Jesuíta Barbosa (Jove), defendidos por Selma Egrei (como Mariana) e Leopoldo Pacheco (Antero).

Egrei foi aqui condenada a um personagem monocromático – o da constantemente irritada e autoritária matriarca. Já Pacheco assumiu o oposto perfeito a isso, soando quase bobo em seu modo ‘Poliana’ de resolver os impasses. Em 1990, para os mesmos personagens, tínhamos uma afinação assombrosa entre o altivo Antero na pele de Sérgio Britto e a elegante Mariana, vivida por Nathália Timberg. Ambos formavam um retrato bem desenhado de uma burguesia decadente, cética, e ainda consciente disso.

Outro exemplo de desacerto, talvez o mais eloquente na síntese do que diferencia a velha da nova versão, está na sequência em que Irma (Carolina Ferraz/Malu Rodrigues) se insinua para Zé Leôncio (Paulo Gorgulho/Renato Góes) na beira de um rio.

Irma (Carolina Ferraz) e Zé Leôncio (Gorgulho): sussurros e romance.

A tal sequência está no capítulo 13 de ambas versões. A versão do passado trazia uma carga romântica difícil de superar o que se fazia na tevê da época (e, talvez, também hoje), com Ferraz compondo sua Irma num misto de ingenuidade e mistério, ao lado de um Gorgulho charmoso em seu Zé Leôncio.

A versão atual, com o diálogo e a mise-en-scène reduzidos, comprometeu o que poderíamos entender sobre a intensidade do amor de Irma por Leôncio, com ambos atores aqui suscitando apenas dois jovens excitados e não dois adultos encantados um pelo outro.

Já na segunda fase, iniciada no capítulo 14, não é difícil perceber que falas escritas para a Guta, vivida agora por Júlia Dalávia (quando antes foi defendida pela ótima Luciene Adami), soam professorais (não por responsabilidade da nova atriz) quando o assunto passa por questões de gênero e identidade sexual; assim como soam as do Velho do Rio de Osmar Prado, ao defender uma postura ecologicamente correta. 32 anos antes, a defesa já existia nas falas do personagem, mas não em tom ativista e sim como uma reflexão incontestável. Elas eram ditas por um Cláudio Marzo, no passado, numa performance austera mas acolhedora.

Cláudio Marzo, um Velho do Rio austero, mas acolhedor

O novo Jove também não tem mais o tom leve de antes. Com Jesuíta sedutor no seu papel, o Jove 2022 é melancólico e constantemente insatisfeito (o que, em termos, parece coerente com a atual geração, diferente dos espectadores herdeiros do espírito New Wave que acompanharam a versão de 1990). Suas falas também foram devidamente ajustadas, mas apenas para a composição do protagonista herói passar imaculada.

Enfim, o que parece haver hoje é um maior interesse da produção em tornar tudo ainda mais densamente dramático do que o próprio enredo naturalmente já entregava.

Mas há acertos também. E na primeira fase da nova Pantanal eles atendem pelo nome de Irandhir Santos, Juliana Paes e Enrique Dias (que também esteve na novela da Manchete). O trio recriou novas e enriquecidas personas para o velho Joventino, para Maria Marruá e para o seu marido Gil.

Se a muganga de Irandhir encantando um boi marruá não deverá ser esquecida na história da tevê brasileira, Juliana Paes emprestou a sua Mária Marruá uma rudeza que Cássia Kiss não dava conta no passado.

Entre os novos, Letícia Salles (a jovem Filó) surge como uma presença marcante em cena, suscitando aquilo que diretores de cinema costumam dizer sobre “a câmera gostar de um ator”.

Na fase dois, o Alcides de Juliano Cazarré é um personagem totalmente redesenhado (sendo isso um elogio). O ator compõe seu peão como compõe um brucutu, fazendo dele alguém insuportável, tal qual um espelho para brucutus da vida real. Elogios também para Murílio Benício que, na mesma linha de Cazarré, dá destaque a um Tenório mais assustador (por ser crível) e menos deslocado como foi o defendido por Antônio Petrin – um dos poucos desacertos na antiga edição da novela, como foi também  destoante o Tibério de Sérgio Reis.

Vale ainda o registro positivo, pelo aspecto técnico-criativo, do delírio encenado por Jesuíta na ocasião da picada de cobra sofrida pelo seu Jove. É uma autêntica peça de beleza audiovisual, sem o uso da palavra oral – que, inclusive, remete à cena final de Lavoura arcaica (2001). É uma peça construída para estimular sensações e fazer arregalar os olhos do telespectador. E funciona.

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