11º Olhar (2022) – Paterno
Entre o que não foi e o que nunca poderá ser
Por Luiz Joaquim | 05.06.2022 (domingo)
Vamos começar pelo fim.
São poucos os filmes brasileiros que nos oferecem uma tomada de encerramento tão desnorteadora, que nos deixa tão sem chão quanto ao destino de seu protagonista como a que vemos em Paterno (Bra., 2022), segundo longa-metragem de ficção de Marcelo Lordello (Eles voltam).
O filme – que teve sua primeira exibição pública encerrada há poucos minutos na competitiva do 11º Olha de Cinema: Festival Internacional de Curitiba – nos dá isso antes dos créditos finais surgirem.
Esse protagonista é o arquiteto Sérgio (vivido com primor por Marco Ricca) e ali na sua última aparição em Paterno, Lordello o coloca no meio do nada. Tão perdido quanto estava no início do filme, ainda que ele tenha passado por transformações que o desequilibram profissional e familiarmente ao longo do enredo.
O ‘nada’ no qual Lordello o deixa é, na verdade, o seu próprio inferno. Um ambiente hostil que Sérgio ajudou a forjar. Um ambiente que, na verdade – o roteiro de Lordello (coescrito com Fábio Meira – diretor de As duas irenes – e participação de Letícia Simões – diretora de Casa) deixa dicas: Sérgio tentou escapar ainda na juventude, quando estudou fora do país.
Num certo sentido, a cidade – no caso o Recife – é o próprio inferno e, para Sérgio, o purgatório são as suas aspirações artísticas (nunca resolvidas) das quais precisou abdicar para submeter-se ao julgo do pai Heitor (Germano Haiut), empresário poderoso e influente há 40 anos na região, por meio da sua familiar e milionária empresa na área da construção civil.
Agora vamos ao início.
O prólogo de Paterno é um pequeno tesouro narrativo-cinematográfico. Quase como um curta-metragem redondo, ele é tão impregnado por uma tensão crescente, com a corda se esticando no limite em seu final, que a sensação é a de que já estamos contemplados com um muito bom filme antes mesmo do crédito com o seu título surgir na tela.
Lordello apresenta aqui, com a inteligência própria da concisão dos bons diálogos, uma situação de opressão social reconhecível e, é verdade, já bem explorada pelo cinema que é feito em Pernambuco nos últimos 14 anos. Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, por exemplo, vem à mente como uma obra de referência.
No caso de Paterno, nesse prólogo há aquela mágica difícil de acontecer em sets de filmagens, mas quando acontece… E ela se dá pela construção dessa tensão aqui já mencionada, mas, particularmente, corporificada pelo confronto de Sérgio com Cláudio (Thomas Aquino, Bacurau), morador da Brasília Teimosa, Recife, que desmascara as reais intenções do empresário.
Ricca e Aquino duelam com os olhos, como num bom faroeste hollywoodiano, naquilo que demonstra o porquê de bons atores serem reconhecidos como bons atores.
Vale dizer que Paterno dedica-se apenas em seu prólogo ao oprimido reconhecível pela cartilha do óbvio (no caso, aqui, a família de Cláudio), mas a sutileza no filme de Lordello está em jogar, depois, um olhar muito curioso sobre Sérgio, o opressor desse prólogo, que, na continuidade do longa, passa também a ser um oprimido dentro de seu contexto e status social, claro. Atenção para não cairmos na tentação de comparar alhos com bugalhos, dramas com melodramas.
Em outras palavras, Paterno, sem a benevolência irresponsável de dourar a personalidade de seu arquiteto corrupto, dá a Sérgio um conflito reconhecível por qualquer pessoa. Aquele em que o indivíduo esquece de seus sonhos originais e de sua aspiração mais sincera por conta de um sufocamento familiar. É verdade que temos no filme o contexto de uma família rica, com o patriarca dominador, mas este mesmo conflito não exige alto status social para se fazer valer.
A trajetória do protagonista que seguimos aqui é a da tentativa dele, uma vez que o patriarca se encontra enfermo numa UTI entre a vida e a morte, tomar as rédeas de seus próprios interesses profissionais, criativos, artísticos até. Por esse seu projeto pessoal se tratar de uma inédita e milionária obra arquitetônica, há quem possa acusar o sonho de Sérgio como apenas mais uma vaidade burguesa qualquer. A acusação seria tão leviana quanto acusar a arquitetura de ser uma arte menor.
Mas no caminho de Sérgio há um irmão mais velho (Nelson Baskerville, numa bela afinação com Ricca), que toca a empresa no lugar do pai e não deixa o irmão mais novo esquecer quem ele é e quem nunca deixará de ser.
É trágica a trajetória de Sérgio.
E para não deixar dúvidas, Lordello inclui o espelho de Sérgio quando jovem. No caso, Tom (Gustavo Patriota, de Fim de festa), seu filho adolescente, ali pelos 17 anos, preparando-se para entrar na faculdade de arquitetura, claro, mas não por vontade própria. Vale dizer que o desconforto do jovem em seguir a carreira do pai não está explícito em nenhuma fala, mas está explícita no olhar silencioso e triste do jovem, quase como um pedido de socorro, como talvez tivesse Sérgio quando tinha sua idade.
Não é por acaso que, quando Sérgio e Tom visitam a antiga mansão da matriarca da família (Selma Egrei, com um olhar de uma eloquência assustadoramente forte quanto ao seu poder), o adolescente encontra discos de vinil que eram do pai, Sérgio, na juventude. Não à toa, a capa do primeiro LP que surge é Alucinação (1976), no qual Belchior entoa, na terceira faixa, Como nossos pais. A canção não toca no filme, mas ela parece estar presente do começo ao fim da história de Sérgio.
Encerrando esse primeiro olhar sobre Paterno, não se pode esquecer de registrar o passo largo dado por Lordello neste seu segundo longa de ficção, demonstrando uma maturidade não apenas impressionante (comparado com o já muito bom Eles voltam), mas cativante no sentido de olharmos para nós mesmos com nossos próprios desejos e sufocamentos.
Curiosidade: Paterno foi filmado em 2017 e uma cartaz com o “Fora Temer” é o único símbolo de seu tempo. Como os habituais bons filmes, Paterno soa atemporal.
Em tempo: a atriz Rejane Faria (Temporada) também brilha com intensidade quase ofuscante em seu papel de Suzana em Paterno. E, na sequência em que Sérgio lhe oferece dinheiro, Lordello consegue dramatizar, apenas com o silêncio e o olhar de sua atriz, centenas de anos de covardia contra a mulher preta no Brasil.
E ainda: Paterno renderia uma bela sessão dupla ao lado do também pernambucano Rio Doce (2021), de Fellipe Fernandes, como se o verso e reverso de duas histórias próximas se complementassem.
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