17ª CineOP (’22): SP Hi-Fi + Primeiros Soldados
Dores, prazeres e conquistas do universo LGBTQIA+ nos anos 1980
Por Luiz Joaquim | 26.06.2022 (domingo)
OURO PRETO (MG) – Noite de sábado (25) muito disputada na 17ª CineOP: Mostra de Cinema de Ouro Preto, com destaque para dois filmes do programa Contemporânea – o documentário Belchior: Apenas um coração selvagem, da Natália Dias e do Camilo Cavalcanti (não o Camilo pernambucano), e a ficção Os primeiros soldados, de Rodrigo de Oliveira; além do documentário São Paulo em Hi-Fi, do Lufe Steffen, este último no programa Preservação.
Para os fãs (e, por que não, para os não-fãs também) do cantor Belchior (1946-2017) a noite foi perfeita com a apresentação no Sesc Cine-Lounge, após a última sessão de cinema, do bloco carnavalesco mineiro Volta Belchior entoando as icônicas canções do cearense em ritmo momesco.
Enquanto o documentário sobre o autor de Como nossos pais exibia na Praça Tiradentes, o Cineteatro do Centro de Convenções projetou as luzes das outras duas obras. O Cineteatro tomou o lugar, neste ano, do Cine Vila Rica, que está interditado.
SOLDADOS – Pode-se dizer que é uma vitória do CineOP conferir que uma plateia jovem e interessada acompanhou, por exemplo, a exibição de Os primeiros soldados. Sessão seguida, inclusive, de debate com Oliveira mediado pela curadora Camila Vieira.
A jovialidade está em Oliveira também que, com 37 anos, está colocando no mundos este seu quarto longa-metragem assinando a direção (além do roteiro e montagem), após um documentário (Todos os Paulos do mundo, 2018) e duas ficções (Teobaldo morto, Romeu exilado, 2014; As horas vulgares, 2011, este coassinado com Vitor Graize).
A boa notícia é que Oliveira só melhora, no campo da dramaturgia, aquilo que ele começou a desenvolver desde As hora vulgares: uma construção narrativa que se esquiva do óbvio, apresentando seus personagens em suas consistências e sem pressa nessa apresentação, se apropriando de diálogos apurados (e eficazes nesse cuidado), além de uma respeitosa (e por isso exitosa) relação com seus atores.
A representação, ou performance (escolham o termo que quiserem), do elenco nos filmes de Oliveira são frutas frescas a serem saboreadas devagar e com prazer.
E aqui um dado. No debate, após a sessão, o diretor registrou que fez enorme diferença metade de sua equipe na produção ser integrante da comunidade LGBTQIA+, considerando que a história ao qual se debruça trata de um assunto caro a todo mundo e, ainda mais, historicamente, a este grupo.
No enredo, estamos em Vitória do Espirito Santo, no 31 de dezembro de 1982. Lá está Suzano (Johnny Massaro, cativante), biólogo que voltou da França, onde vive com o namorado, para passar algum tempo com a irmã (Clara Choveaux, sempre ótima) e o sobrinho adolescente Suzano (Alex Bonini, estreando no cinema, sendo talvez o único elo frágil do elenco).
Suzano, porém, esconde de todos sobre sua doença ainda incompreensível para ele e para a própria medicina. O que interessa a Oliveira aqui, nessa sua investigação dramática e dramatúrgica, é, entre um e outro mergulho no espírito humano, como se dá a percepção da essência da vida a partir dessa nova perspectiva imposta aos seus personagens invisibilizados. Uma perspectiva impregnada pela proximidade e exasperação da finitude da própria vida, sendo colocada de maneira clara e dura pela doença misteriosa, inicial e criminosamente taxada de “peste gay”.
Numa espécie de comunidade isolada, junta-se a Suzano num sítio, o videomaker Humberto (Vitor Camilo), ainda num processo de aceitação a respeito da sua sexualidade, e a transexual Rosa (Renata Carvalho, ótima), representando o oposto de Humberto no que diz respeito ao enfrentamento da sua condição no mundo.
Numa das falas impactantes do filme (e são muitas, em se tratando da escrita de Rodrigo), Rose diz mirando para a câmera VHS do vídeomaker Humberto que as trans seriam a “mãe” dessa nova situação, e é taxativa em afirmar sobre o grupo afetado no começo da doença – gays, drogados, prostitutas –, “tudo o que eles vêm tentando destruir desde sempre”. A provocação encerra com Rose apontando para si mesma e perguntando: “Você acha que eles vão destruir isso?”.
Quase 40 anos depois do ano sugerido pelo filme com essa indagação, sabemos que a insistência nessa destruição persiste hoje no mundo, e forte, mas fracassada, ainda que não sem muita luta e sofrimento dos atuais ‘soldados’.
São muitas as qualidades em Os primeiros soldados, com elas passando por uma reunião de elementos cinematográficos cuidadosos, pensados por Oliveira, que juntos convergem para o impacto que uma boa mise-em-scène pode provocar.
Em termos estéticos, marque-se a boa ideia da presença dos planos e texturas do VHS, tomando o protagonismo das imagens quando nos, espectadores, “entramos” no endereço secreto do solitário trio capixaba que se acalenta e se cuida.
Salvo engano, vale dizer que Os primeiros soldados é o primeiro filme brasileiro que dramatiza um contexto tão determinante na história da comunidade LGBTQIA+, destacando, com agudeza, as dores daqueles solitários soldados.
Os primeiros soldados entra em cartaz nos cinemas do Brasil no próximo 7 de julho.
HI-FI – Num dos depoimentos do documentário São Paulo em Hi-Fi, projetado duas horas antes do filme de Oliveira, também no Cineteatro do Centro de Convenções, um personagem fala com convicção algo como: “Ser gay deixou de ser bacana, divertido, elegante com a chegada da Aids nos anos 1980 para ser algo perigoso. Se não fosse por isso, as conquistas de hoje para a comunidade já teriam sido realizadas há muito tempo”.
Numa impressionante pesquisa de campo, o diretor Steffen, com fotografias, depoimentos contemporâneos, recorte de reportagens impressas, panfletos e, ao menos, uma fonte de audiovisual, desenha o início, a ascensão e a decadência das casas noturnas gay paulistanas. São três décadas de descobertas, lutas, mas sobretudo extrema busca por liberdade dentro de um contexto, não se pode esquecer, de um governo ditador, o que torna tudo o que descobrimos no filme ainda mais impressionante.
Mas Steffen dedica só o necessário na menção ao baixo astral da repressão. O que lhe parece mais interessar aqui é o quão desbravadora, feliz e criativa foi aquela época para universo LGBTQIA+, quase que dando um recado à nova geração sobre a quem eles devem reverência.
O diretor, na apresentação da sessão, não escondeu que sempre pensava, quando exibia o filme fora de São Paulo, se detalhes daquela cena tão localizada interessaria espectadores de outra geografia, para ele mesmo concluir que sim.
Steffen estaca certo. São Paulo em HI-FI é um documento que pode ser espelhado em qualquer lugar do mundo ou, ainda, servir de inspiração para eventuais regiões que ainda (sim, elas existem) não ousaram ser feliz como bem entendem.
– viagem a convite da Mostra
0 Comentários