Ilusões Perdidas (2022) – texto #2
Ilusões Perdidas e o cinema como espetáculo
Por Humberto Silva | 05.06.2022 (domingo)
Ilusões Perdidas, de Balzac, está entre as leituras adolescentes que me impactaram. Li-o novamente anos depois, sem a preocupação de concluir a leitura, e, até hoje, é um dos livros que por vezes recolho da estante e folheio ao acaso algumas páginas. A leitura de Balzac, do ciclo dos chamados Romances de Costumes, me faz crer que tenho da sociedade francesa da Restauração Bourbon, de sua queda com a Revolução de 1830 e os agitados anos de monarquia liberal dos Orleans – enquanto a hipérbole me permite –, mais conhecimento do que do primeiro reinado e regência do Brasil. Pela amplitude dos temas da Comédia Humana, pelo trânsito em diversos estratos da sociedade e sensibilidade para capturar e descrever traços sociais e o estado de espírito de uma época, Balzac é para mim o maior retratista da sociedade francesa da primeira metade do Dezenove.
Este introito, com toque em experiência pessoal, é para realçar que Balzac, como provavelmente nenhum outro escritor dos inumeráveis em sua época, viveu intensamente o tempo retratado em seus romances. Com seu gênio romântico, foi de sensibilidade impar para reter traços pregnantes de uma sociedade em que conviviam os caprichos e esnobismo de uma aristocracia que se recusava a sair de cena e a voracidade de uma burguesia ascendente. Foi, em grande parte por isso, o escritor de cabeceira de ninguém menos que Karl Marx, assaltado nos anos vividos em Paris pelo poder da obra balzaquiana, que descreve o movimento da história tendo por pressuposto a luta de classes.
Balzac teve sua imensa obra vastamente adaptada pelo cinema. Do que se tem registro, deve-se a Alice Guy-Blaché a primeira versão, a partir do romance A prima Bete, que ganhou o título La Marâtre (1906). Muitos de seus livros, inclusive A prima Bete, tiveram mais de uma versão fílmica; mas curiosamente Ilusões Perdidas, para tantos a obra-prima de sua monumental Comédia Humana, ganha só agora imagens no cinema. Coube a Xavier Giannoli a primazia. No caso, a levar em conta a expectativa de quem o realizou, um empreendimento bem sucedido: foi o grande vencedor do César deste ano. Um ponto, então, para quem tem o livro e o filme em mira é o cotejo: como Giannoli filmou um livro com mais de seiscentas páginas? E outro ponto ainda: qual a relação entre passado e presente em um livro quase duzentos anos depois de sua publicação?
Cotejar livro e filme, com respeito à trama e à caracterização de personagens, é exercício arriscado numa resenha rápida. O roteiro de Ilusões Perdidas, óbvio, procedeu a um recorte; como igualmente procederia escrever sobre o filme o tendo livro por referência. Só para ilustração, a saga do editor de província, que abre o livro, foi extraída do filme. O roteiro, assinado por Giannoli em colaboração com Jacques Fieschi, faz gravitar toda ação de Ilusões Perdidas em torno do protagonista: Lucien de Rubempré. No modo minucioso, contudo, como Balzac descreve o mundo editorial na província, elementos para se entender a ambição e voracidade de Dauriat, um indivíduo inculto que dominará o mercado editorial em Paris e comporá a burguesia liberal que derrubará a monarquia restaurada na Revolução de 1830. No filme, temos uma pátina do que Dauriat representa.
Ilusões Perdidas, então, se concentra no trajeto do jovem Lucien de Rubempré. Poeta de província, como milhares naqueles anos, ele almeja conquistar Paris. O filme percorre seu idealismo romântico em contraste com a realidade cruel que encontra: o mundo parisiense é comandado pela ganância, pela frivolidade; marcado por traições de toda sorte e que tem no dinheiro (o capital) sua mola propulsora. Frente à realidade encontrada, vemos a transformação de caráter em Rubempré e o desfecho dramático de suas ilusões. Para o espectador, portanto, lampejos de como a sociedade francesa daquela época era estruturada e como, nela, ambições ingênuas de brilhar em Paris eram cruelmente destroçadas.
Com o foco narrativo em “terceira pessoa” – uma voz over faz o papel do narrador do romance –, o filme faz uso de uma liberdade incômoda: sinaliza que Nathan d`Anastazio, escritor próximo e que mantém relação ambígua com Rubempré, “contaria” a história. Incômoda porque, apenas pelo recurso à elipse podemos suspeitar do acesso que Nathan teria à vida intima de Rubempré com a atriz e coquete Coralie. Incômoda também porque num enquadramento exibindo o rosto com o estado emocional de Rubempré, o espectador teria em vista um narrador ausente, a voz over, e não um olhar com a perspectiva de Nathan. Trata-se, entendo, de um “truque” de filmagem quanto ao foco narrativo que em muitos filmes tem o sentido de desnortear a atenção do espectador. Pensemos em O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais. Em Ilusões Perdidas, no entanto, a mudança de perspectiva do olhar leva à questão de saber se o trajeto de Rubempré é filtrado pelo que Nathan enxerga. O filme de qualquer forma, assim me parece, deixa a interrogação de que aquilo que se vê poderia ser pelo olhar de Nathan; ou seja, do que ele teria escrito.
Produção cara, custou em torno de dezoito milhões de dólares, recheado de cenas externas, fica como curiosidade ver a cidade de Paris antes da reurbanização conduzida por Georges-Eugène Haussman no Segundo Império. Novamente, truques de filmagem dão uma ideia opaca de como seria uma rua de Paris naquela época, quando, só para lembrar, Louis Jacques Daguerre fazia experimentos com o que veio a receber o nome de fotografia. Ainda que a produção tenha sido bem acabada – a esse respeito o crédito vai para o diretor artístico Riton Dupire-Clément –, ela reflete os ambientes internos, o burburinho nas redações dos jornais, as escadarias e salões nos palácios, o teatro, a alcova, pois a Paris urbana nas cenas externas resulta de imaginação cinematográfica. Nisso, bem entendido, nenhum problema senão que não temos registro de como era o tráfego de coupés e fiacres na Paris da primeira metade do Dezenove.
Vale ainda abordar. A adaptação fílmica de um romance de costumes do século XIX pode dizer muito sobre nosso presente; ou, o que hoje é presente: as promíscuas relações entre notícias e seu falseamento, notadamente com as fake news, não trariam novidade. No mundo retratado por Balzac em Ilusões Perdidas, grassam situações em que figuras proeminentes da vida pública são atacadas e ridicularizadas por meio de notícias inventadas.
Certo, mas nisso o quanto a adaptação de uma obra de época pode dizer mais do presente do que do passado retratado. No mundo em que vivemos há um julgamento moral negativo com respeito ao falseamento de notícias. Quem quer que seja acusado de propagar notícias falsas não só nega tê-las feito como sente a acusação como ofensa. Na sociedade francesa do século XIX, marcada pela frivolidade e pelo código de boas aparências, a propagação de notícias apenas suspeitas era parte constitutiva do jogo. Qualquer reputação se expunha a futricas e caprichosas vinganças; claques eram coordenadas para exaltar ou demolir uma apresentação teatral. De modo algum – talvez, caricaturadas no filme –, essas práticas se escondiam no anonimato, muito pelo contrário: o personagem Singali recebia de quem lhe pagasse mais para aplaudir ou apupar uma encenação. E isso, a espetacularização da notícia a qualquer preço, se não percebida, mistura o sentido moral que hoje damos à expressão fake news e o que pode ser entendido como similar, quando confrontada à moralidade da época de Ilusões Perdidas.
Com as inevitáveis dificuldades de transposição de uma obra de época para outra, tanto mais tratando-se de um livro caudaloso como Ilusões Perdidas – o que evidentemente implica num projeto ambicioso –, o filme de Xavier Giannoli deve atender às expectativas de espectadores mesmo mais exigentes. Por suposto, não cabe a expectativa de que Giannoli exibe algo mais que um grande espetáculo cinematográfico, e nele traços de uma sociedade brilhantemente impressa pela pena de Honoré de Balzac.
Para ler a crítica de Luiz Joaquim para Ilusões perdidas, clicar aqui
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