Tico e Teco: os Defensores da Lei
Uma festa de referências que observa com sagacidade a cultura pop
Por Renato Felix | 06.06.2022 (segunda-feira)
Os desenhos animados são, na verdade, filmados com atores. Isso porque os desenhos existem de fato e trabalham nos estúdios de Hollywood como qualquer outro intérprete, convivendo normalmente com os seres de carne e osso. Essa foi uma realidade estabelecida pelo clássico Uma cilada para Roger Rabbit em 1988 e retomada em Tico e Teco: os defensores da lei (Chip’n’Dale, Rescue Rangers, 2022), mistura de animação com atores reais lançada pelo streaming Disney+.
O filme leva o mesmo título da série animada que durou de 1988 a 1990, na qual Tico se vestia como Indiana Jones e Teco como Magnum. Nesta nova produção, a série tinha os esquilos da Disney e outros animais não como resultado dos rabiscos de desenhistas, mas como atores, já que existem de verdade (e que não falam com “voz de esquilo”, aquilo é atuação deles). Numa das primeiras cenas, o elenco celebra o sucesso numa festa onde Roger Rabbit é um convidado. Como se o coelho do filme de 1988 estivesse dando sua bênção ao novo filme – aproveitando muito bem o fato de que a série dos esquilos foi lançada no mesmo ano.
Com o fim da série, em 1990, a dupla caiu no ostracismo – segundo o filme. Em 2022, Tico vende seguros e mora sozinho no subúrbio. Teco vive do passado, participando de convenções nostálgicas com outros personagens em desuso (como o Lumière de A bela e a fera) e com uma nova aparência: fez uma cirurgia plástica, uma harmonização facial, e agora é uma animação em CGI – não mais desenhada à mão.
O reencontro da dupla se dá quando um antigo colega de elenco se vê em apuros e depois desaparece. Os amigos acabam deixando as diferenças de lado para investigar e vão descobrindo um esquema de cirurgias ilegais em personagens de animação para que eles sejam usados em produções piratas e de péssima qualidade que copiam grandes sucessos. Haviam inúmeras delas em DVD, você lembra.
Essa sagacidade em torno de muitos aspectos da cultura pop é o grande trunfo de Tico e Teco: defensores da lei. Desde o contraste entre os dois estilos de animação presente o tempo todo nos dois protagonistas, há um número incontável de participações especiais de personagens não só da Disney, mas praticamente de todas as produtoras estadunidenses. Aparecem ou são citados membros do elenco da Hanna-Barbera, da rival Dreamworks, dos Looney Tunes, super-heróis da Marvel e da DC, dos canais Nickelodeon e Cartoon Network.
De Pica-Pau a Peppa Pig, passando por Beavis & Butt-Head, a lista parece não ter fim. É um quem-é-quem difícil de acompanhar e novos personagens certamente são identificados por quem assistir ao filme uma segunda vez. Mas algumas aparições roubam a cena. Paul Rudd, o Homem-Formiga dos filmes da Marvel, tem uma aparição hilariante com seu Ant-Man virando Aunt-Man (ou o “Homem-Tia”). Meryl Streep aparece num cartaz estrelando uma refilmagem de Uma babá quase perfeita.
Em outro, o grande blockbusters da vez é Batman vs. E.T. (sim, o de Steven Spielberg). Em outro momento, os esquilos visitam um bairro sombrio chamado Vale da Estranheza. Esse é o jargão usado para a sensação provocada por animações que tentam ser realistas, mas não conseguem. O expresso polar (2004), por exemplo, é citado, mas o melhor é o beco onde o lixo é revirado por gatos de rua – os da malfadada versão para cinema do musical Cats (2019).
E ainda há a participação antológica do “Sonic Feio”. É a animação do ouriço superveloz dos videogames que surgiu no trailer do primeiro filme do personagem, que mistura animação com atores reais. O visual foi tão criticado que a animação foi refeita para os trailers seguintes e para o filme, se aproximando muito mais do visual mais familiar do personagem. E aquela primeira tentativa ficou esquecida, restrita ao primeiro trailer circulando no YouTube. Até agora, porque o Sonic Feio ganha seu momento de glória reaparecendo como mais um ator no ostracismo em Tico e Teco: os defensores da lei.
Assim, o filme é cheio de boas ideias para brincar com diversos elementos da cultura pop e misturando diversos tipos de animação diferentes (há até massinha e marionetes). A trama, em si, é só um tapete para que essas referências desfilem. Mesmo a ambientação desenhada pelo filme possui suas fragilidades, se o espectador exigir rigor. Peter Pan aparece envelhecido, por exemplo, mas outros personagens de desenho não. Até mais antigos que ele, como os Três Porquinhos. E Pan chega a contracenar com um dos Meninos Perdidos de seu filme que, ao contrário dele, permanece um menino. Os próprios Tico e Teco são personagens dos anos 1940, e não fizeram sucesso só nos anos 1980, embora o filme prefira ignorar isso.
Nesse ponto, Uma cilada para Roger Rabbit permanece o grande exemplo do uso extraordinário da técnica, o senso sagaz de brincar com diversas referências, mas aplicadas a uma trama e narrativa excelentes. Tico e Teco: defensores da lei está mais para uma divertida brincadeira, uma pirâmide de cartas onde o barato está em conseguir colocar mais uma referência por cima.
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