14ª Janela (2022) – Crimes do Futuro
‘Cronemblerg!’ volta a esticar o limite do corpo para nos provocar sobre nossos prazeres.
Por Luiz Joaquim | 14.07.2022 (quinta-feira)
A sessão de retorno presencial do Janela Internacional de Cinema do Recife, em sua 14ª edição (apresentada como edição de ‘transição’), ontem (13) no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, não poderia ter sido mais emblemática e simbólica para o festival e sobre o festival, sem esquecermos dos mesmos significados para a sala em si, que recebeu como projeção de abertura o longa-metragem Crimes do futuro (Crimes of the Future, Can./Rei.Unid./Gre., 2022) – o mais novo filme de David Cronenberg que entra em carta hoje (14) no Brasil.
O que há de emblemático? Há que o Janela já não é, há algum tempo, para o Recife apenas um festival de cinema mas sim um evento importante para que novas ideias circulem de cabeça em cabeça e assim a cultura evolua para onde quer que ela vá evoluir – na verdade, esse preceito deveria estar presente no DNA de todo e qualquer festival de cinema, mas…
E, envolvendo um novo e jovem público em torno deste novo Cronenberg, o Janela está fazendo (na verdade, continua fazendo) muito bem o seu papel de ser um ambiente renovador para a reflexão sociocultural.
Do ponto de vista do espaço – o Cinema da Fundação -, a sala experimentou uma sessão emblemática com relação a sua própria história, se considerarmos que o endereço na Rua Henrique Dias reviveu ontem aquilo que promoveu para várias ‘novas gerações’ do passado, particularmente nos últimos 24 anos.
Seguindo o raciocínio, e voltando à sessão de Crimes do futuro, a presença massiva de um público juvenil ocupando o Cinema da Fundação para encontrar este Cronenberg resultou num match (para usarmos um termo das relações líquidas de hoje) bastante exitoso promovido pelo festival.
E é aqui que entra a força simbólica de Crimes do futuro com este renovado público do Janela. Público juvenil, repetimos, que em sua maioria se relaciona com o sexo passando longe da histórica limitação binária ‘homem x mulher’. E se o futuro pertence aos jovens, então será este o sexo que teremos.
Mas Cronenberg, em seu futuro, exacerba a relação entre o corpo humano e o sexo. E, sendo assim, não haveria mais adequada plateia para este filme que o presente na sessão de ontem. A propósito, as diversas leituras intelectuais produzidas sobre ‘a potência da presença do corpo no cinema’, aplicadas a alguns filmes contemporâneos, deverão soar raquíticas quando confrontadas com as provocações propostas em Crimes do futuro.
“Corpo é Realidade” estampa a tela de uma tevê de tubo numa performance artística do filme.
O FILME – Lá, no futuro de Cronenberg, os humanos estão em mutação. Não sentem dor e o artista performático Saul Tenser (Viggo Mortensen) com sua parceira Caprice (Léa Seydoux) promovem apresentações de cirurgias ao vivo, com Tenser passando pela intervenção sem anestesia para tirar um novo órgão, sem função aparente, concebido como uma peça de arte no interior, literalmente, do seu corpo mutante.
A propósito, imagens do abdômen de Tenser sendo aberto por uma máquina originalmente criada para realizar autópsias têm deixado parte da plateia bem desconfortável, como aconteceu na sessão inaugural do filme, promovida há dois meses em Cannes.
Mas é da boca da burocrata Timlin (Kristen Stewart, muito boa) – cujo trabalho é catalogar ilegalmente os novos órgãos desses mutantes – que sai o óbvio já constatado pelo espectador sobre as experiências da extração da ‘Beleza Interior’ de Tenser. A certa altura, ela sussurra, trêmula de tesão, para o seu ídolo, Saul Tenser: “Cirurgia é o novo sexo, não é?”.
O velho sexo não existe, ou não é mais praticado com prazer, neste futuro de Cronenberg. Nas ruas, nos guetos, o que vemos são as pessoas sendo consensualmente mutiladas por outras em busca de uma sensação diferente para o seu corpo indolor, insensível… no mais preciso conceito da expressão ‘insensível’, ou seja, em seu corpo ‘sem sentir’.
Esta dormência que se apresenta nos humanos do futuro proposta pela cineasta, como toda boa provocação artística (cuja “criação é geralmente associada a dor”, diz alguém no filme), parece ser nada mais que um espelho bem azeitado das exacerbações do hoje. A busca pelo prazer carnal não tem limites e só se expande. Mas, e se esse limite finalmente se apresentar a nós? Os humanos irão procurar novos prazeres carnais, é o que nos estimular a pensar o cineasta canadense “Cronemblerg!”.
Em meio ao que já parece suficientemente provocador, Cronenberg ainda injeta uma subtrama policialesca, em torno do cadáver do menino Brecker (Sotiris Sozos). O menino de oito anos seria o primeiro mutante natural a partir de uma experiência não natural praticada pelo seu pai Dotrice (Scott Speedman), com o seu apetite, literalmente, por produtos sintéticos. “Somos os humanos do futuro. Comemos o que produzimos”, se explica, orgulhoso, Dotrice.
Em resumo, muito ainda será escrito sobre Crimes do futuro, louvando ainda mais a carreira de Cronenberg de volta, agora, ao que faz de melhor: esticar os limites do humano em seu casulo (o corpo) e nos deixando inquietos na poltrona do cinema.
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