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Godard depois da Nouvelle Vague

Contexto a respeito de um ponto de inflexão na carreira de mestre francês.

Por Humberto Silva | 24.07.2022 (domingo)

Em 1967 Jean-Luc Godard lançou Duas ou três coisas que eu sei dela, A chinesa e Weekend à francesa. Com esses três filmes, realizados no mesmo ano, se encerra o período em sua obra que o identifica à Nouvelle Vague. Concomitantemente, ao se envolver em projetos coletivos, dava sinais de passar por processo de transição: dirigiu, nesse mesmo ano de 1967, o episódio Antecipação ou o amor no ano 2000, do longa A profissão mais antiga do mundo, que contou também com episódios de Claude Autant-Lara, Mauro Bolognini, Philipe de Broca; em 1968, por sua vez, colaborou com alguns panfletos para o Cinétracts (projeto em que ele se envolveu junto com Philippe Garrel, Chris Marker, Alan Resnais) e, igualmente, filmou o curta Câmara olho para o filme militante Longe do Vietnã, no qual participaram, ao lado dele, Chris Marker, Joris Ivens, Alan Resnais, Claude Lelouch e Agnès Varda. Mas, de fato, ele parte de modo estratégico para a realização coletiva com a formação do Grupo Dziga Vertov, no qual, além dele, fizeram parte Jean-Pierre Gorin, Jean-Henri Roger e Armand Marco. E assim, até 1972, quando realiza Tudo vai bem, não tem seu nome creditado nos filmes do coletivo. A história, contudo, considerando exclusivamente o ponto de vista da assinatura, é embaralhada.

O Grupo Dziga Vertov está na origem dos seguintes filmes: Um filme como os outros (1968), Sons britânicos (1969), Pravda (1970), O vento do leste (1970), Lutas na Itália (1971), Tudo vai bem (1972), Carta para Jane (1972), Aqui e acolá (1975) e Vladimir e Rosa (1977) [As datas aqui referem-se ao ano de lançamento, não ao de realização]. Não obstante, Um filme como os outros, realizado apenas por Godard antes da formalização do grupo em 1969, foi posteriormente reivindicado. Ainda, nesse meio tempo, Godard assinou On+On/Sympathy for the Devil (1968) e A Gaia Ciência (1969); assim como dividiu a direção de Tudo vai bem com Gorin e de Aqui e acolá – em que aproveitou material do inacabado Até a vitória, de 1970 – com Anne-Marie Miéville. Os dois primeiros, efetivamente, pois envolveram condições contratuais sobre direitos, não foram reivindicados pelo grupo (On+On é a filmagem na Inglaterra de gravação da canção título dos Rolling Stones entremeada por intervenções políticas: destaque para conclamações dos Panteras Negras). Agora, mesmo dividindo a direção de Tudo vai bem com Gorin, o filme não foi creditado ao Dziga Vertov. Para complicar um pouco mais: Até a vitória era um projeto do Dziga Vertov, mas, ao ser concluído como Aqui e acolá, não foi reivindicado pelo grupo, que efetivamente se desfez em 1972 após Carta para Jane (para fazer uso das imagens de Até a vitória em 1974 e concluir Aqui e acolá, entretanto, houve escaramuça entre Godard e Gorin). Ao pé da letra, só com Número Dois (1975), experiência em vídeo ao lado novamente de Anne-Marie Miéville, Godard abrirá nova página em sua prolífica e errática carreira.

Continuemos com a sequência embaralhada de realizações godardianas no final dos anos de 1960. A Gaia Ciência, produzindo inicialmente para a televisão, mas rejeitado pela companhia produtora, a ORTF, é um filme iniciado antes de Um filme como os outros e lançado depois da realização deste. Nele, de fato, a primeira experiência em que Godard rompe com o que seria, para o seu padrão, a narrativa normal de Weekend à Francesa; quer dizer: um filme com uma trama em que minimamente se possa encontrar em enredo. Em A gaia ciência, dois personagens, num estúdio completamente preto, têm apenas seus corpos iluminados. Émilie Rousseau (Jean-Pierre Léaud) e Patrícia Lumumba (Juliet Berto), militantes de esquerda, estão diante de imagens – um aparelho de TV que é exibido em contracampo em alguns momentos – e conversam sobre o que veem, sobre o poder que a profusão indefinida de imagens e sons exerce. Em confronto com as imagens de consumo desenfreado, fetiches do mundo capitalista, violência e miséria, slogans insurgentes no Terceiro Mundo, a voz over de Godard sussurra sobre os acontecimentos de maio de 1968 e defende como as contradições do capitalismo podem ser superadas pelo marxismo-leninismo. A banda sonora, no que lhe toca, opõe o som suave de um piano, quando o foco é o casal, e o ruído estridente de um áudio que não encontra frequência, quando a voz sussurrada de Godard desponta abruptamente.

Juliet Berto e Jean-Pierre Léaud: “A Gaia Ciência” (1968)

O caminho aberto em A gaia ciência dará as diretrizes para os filmes de que Godard participará no Dziga Vertov: personagens expressando opiniões, comentando ou simplesmente emitindo palavras de ordem; interrompendo ou mesmo se sobrepondo ao que falam, uma voz over inicia uma exposição em flagrante contraste com o que foi dito pelos personagens; no contracampo dos personagens, imagens de arquivo, colagens, slogans publicitários, inserts com palavras, frases rabiscadas ou indicações alusivas. Da experiência com A Gaia Ciência a se notar, entretanto, que a opção pela filmagem em estúdio foi abandonada nos filmes do Dziga Vertov. Nestes, os personagens se inserem geralmente ou no espaço público ou isolados em apartamentos, no mato, onde encenam, realizam performances e conversam coloquialmente. Em Um filme como os outros e O vento do leste, notadamente, a escolha pela filmagem no meio do mato. O primeiro, a esse respeito, numa clareira, cinco personagens conversam sobre as greves que estão acorrendo na França naquele momento, a relação desencontrada entre estudantes e operários, a adoção de violência como resposta à violência que o sistema capitalista impõe e as diversas ranhuras de intepretação que o marxismo pode oferecer quando se contrapõe a teoria e a prática revolucionária.

Godard segue, então, em Um filme como os outros, procedimento adotado em A gaia ciência: personagens isolados falam sobre a situação vivida no presente, contrapõem suas opiniões e alternam os assuntos inadvertidamente, como numa conversa prosaica num bar. Mas há diferenças notáveis que devem ser ressaltadas. Em A gaia ciência, Jean-Pierre Léaud e Juliet Berto são atores profissionais que improvisam sob olhar de Godard. Há encenação entre os dois. A encenação é evidenciada num exercício de metalinguagem no próprio filme. Já os cinco personagens de Um filme como os outros são mostrados a distância. Seus rostos, de fato, não são filmados, de modo que não se tem identificação qualquer sobre quem eles sejam. Pode-se reconhecer que são cinco pessoas conversando: quatro rapazes e uma moça; pode-se reconhecer o timbre de voz e a alternância das falas; mas, com exceção da moça, ao espectador é um esforço enorme reconhecer em momentos diferentes da conversa uma mesma voz com uma posição que, eventualmente, revelaria contradição ou mudança de opinião em razão da polifonia de vozes e assuntos tratados.

Não bastasse a dificuldade para reconhecer quem fala na discussão entre os personagens, a atenção do espectador se torna mais exaustiva porque às vozes deles é sobreposta subitamente a voz over de uma mulher e a de um homem alternadamente. Enquanto os personagens conversam sobre temas e eventos presentes, a voz over, de modo fragmentado, expõe princípios gerais sobre teses do marxismo-leninismo. Por meio da voz over, ainda, é feito uma espécie de relatório cronológico dos acontecimentos pelo mundo, desde uma publicação do Le Figaro de 1967, que trata da proibição da livre circulação no campus universitário entre os quartos de meninos e meninas, até setembro de 1968, com a violenta repressão policial às manifestações no México, o massacre de Tratelouco.

Um filme como os outros é uma experiência de que, mais recentemente, se viu algo que guarda alguma semelhança com Malmkrog (2020), de Cristi Puiu. Personagens que falam sem parar, alternando constantemente e sem previsão a ordem dos assuntos sem que se tenha claro o que impulsiona a conversa nem que se tenha qualquer desfecho. Buscando uma referência no campo da filosofia, é algo como O banquete, de Platão, em que se identifica o tema geral do que está sendo falando; mas, ao contrário do diálogo platônico, não há um foco preciso nas intervenções que permitam ao espectador seguir o rumo que a conversa toma. A se matizar, não obstante, que Puiu valoriza a representação estética, o enquadramento minucioso, o tempo narrativo, o espaço cênico. Para Godard do Dziga Vertov essas escolhas revelariam uma sensibilidade burguesa revisionista, ou mesmo conservadora.

“Um filme como os outros”, do Grupo Dziga Vertov

Tanto A gaia ciência como o conjunto de filmes do Grupo Dziga Vertov exploram procedimentos que de algum modo Godard havia indicado em sua filmografia anterior, e que são radicalizados. Um aspecto notável é o tratamento dado à linguagem. Émilie, em A gaia ciência, pergunta a Patrícia: qual a relação entre a exclamação “Oh!” e a palavra “Stalin”? Ora, no aparente nonsense da pergunta, o sentido da radicalização adotada por Godard e que dá uma espécie de chave para que o espectador ligue pontos, estabeleça relações, busque referências em sua própria formação, seja desafiado a pensar, a refletir para além do imediatamente perceptível. A ligação entre uma palavra e outra numa frase, uma imagem e outra na montagem, um som e outro na banda sonora exige reflexão. Em decorrência, pois o cinema congela o tempo, ao contrário da vida vivida, o que passou despercebido pelo espectador pode ser retomado tantas vezes quantas ele quiser para que, em algum momento, o que não se compreendeu numa primeira impressão tenha uma apreensão diferente em outro momento.

Cinema é imagem e som em movimento. Assistir a um filme para Godard é mais do que se postar diante do fluxo de imagens de modo passivo, é ser desafiado pelo que elas significam. E isso fica bem explicitado na conversa entre Émilie e Patrícia. A comparação é entre o tempo que uma imagem flui na tela e o tempo de leitura de uma passagem da 6ª Meditação Metafísica de Descartes. Quando se lê Descartes, quando se cobre um tempo para passar por todas as palavras do fragmento da meditação, a fim de se a bem compreender, é preciso parar para pensar. E depois continuar a leitura. Com ironia e profundo sarcasmo, essa a exigência para o nexo aparentemente improvável entre a exclamação “Oh!” e a palavra “Stalin”.

Assim, num filme como Um filme como os outros, uma conversa infindável entre cinco pessoas, com duração de quase duas horas, exige do espectador um tempo para apreensão do sentido daquilo que elas falam; o qual depende, pois, da capacidade intelectual dele para estabelecer nexos, para refletir, enfim, a partir de informações que são expostas sem um contexto que previamente o deixaria prevenido. No início do filme, a conversa entre os personagens gira em torno da greve na Flins. Ora, para um francês no momento das filmagens, e mesmo hoje, está claro o que significa Flins (num anti-spoiler, deixo aqui o significado em aberto e o título de um filme de Leon Hirszman: ABC da Greve). Para dar o sentido do procedimento de Godard numa situação em contraste, tenho em vista uma passagem de O vento do leste: uma voz over feminina afirma inopinadamente que “dois dias após o sequestro do embaixador ianque no Brasil foi adotada a pena de morte no país”.

A voz over não vai além disso. Para um francês, talvez não na época das filmagens, mas hoje possivelmente, uma informação similar ao do resultado da batalha de Curupaiti na guerra do Paraguai (nós, brasileiros, sabemos qual foi o resultado…). Para nós, por suposto, a voz over não precisa ir além do que foi dito porque sabemos que dois dias depois do sequestro do Embaixador norte-americano no Brasil, Charles Elbrick, foi redigido o Ato Institucional Nº 14, que institui a pena de morte para crimes que atentassem contra a segurança nacional. Enfim, Godard exige que o espectador se sinta desnorteado com uma informação que desponta sem aviso prévio e que, por isso, pare para conferir que a pena de morte no Brasil foi abolida com a proclamação da República e novamente adotada em 1969, justamente no momento em que ele filma O vento do leste. Para reforçar o que pretendo mostrar, no mesmo O vento do leste é feita uma alusão a Papadopoulos; assim, sem prenome. Hoje acredito que muitos franceses e brasileiros teriam de acessar o google para conferir quem foi Georgios Papadopoulos…

“Um filme como os outros”, filmado no mato.

O vento do leste, assim como Um filme como os outros, foi filmado no meio do mato. Mas os personagens, com as presenças de Gian Maria Volanté, Anne Wiazemsky, Cristina Tulio-Altan e a fugaz aparição de Glauber Rocha, se movimentam constantemente e se multiplicam a ponto de a própria equipe de filmagem ser igualmente filmada. Embora mantenha o princípio de ruptura com uma trama que conduza a ação, Godard explora encenações nas quais de algum modo se podem reconhecer arquétipos sociais: Volanté é o exército norte-americano vitorioso com a Guerra da Secessão, Wiazemsky a militante de esquerda, Cristina Tulio-Altan a mulher burguesa vestida à belle époque. Nesse sentido, ao privilegiar situações encenadas, ele faz uso tímido da interpolação de imagens de arquivos, de slogans e da inserção de sentenças chamativas, exaustivamente recorrentes em A gaia ciência e Um filme como os outros. Ao contrário destes, igualmente, O vento do leste é fortemente marcado pelo acento nas dissenções ideológicas no seio de um regime comunista como o soviético. A mais importante, a meu ver, a que expõe as divergências entre Dziga Vertov e Serguei Eisenstein, e que explicita o porquê de ter adotado o nome de Vertov para um coletivo de cinema.

No confronto entre Vertov e Eisenstein, O vento do leste assume a defesa do cinema revolucionário do primeiro e toma o de Eisenstein como revisionista; portanto, a serviço da espetacularização burguesa. Para Godard, o que ficará claro na década de 1990, quando levará a cabo o ambicioso projeto de suas História(s) do Cinema, o propósito primeiro do cinema é o de filmar “o tempo histórico” do acontecimento vivido. Em outras palavras: cabe ao cineasta posicionar a câmara no lugar onde ocorre a história. Em 1925 Eisenstein recua com O encouraçado Potemkin para 1905. Ao contrário de Vertov, que filma A história da guerra civil entre o Exército Vermelho e o Branco quando a guerra efetivamente acontece, Eisenstein se abstém do presente e ficcionaliza o passado. Por isso, com mordacidade desmedida, a voz over de O vento do leste lembra que o Potemkin servirá de modelo para a UFA estimular a realização de filmes de propaganda nazista na década de 1930.

É nesse mingau ideológico que se pode entender a intervenção de Glauber Rocha. Godard o convoca para que ele sirva de porta-voz do cinema político do Terceiro Mundo. Portanto, a pergunta estratégica que lhe foi feita – não gratuitamente num ponto de bifurcação: que caminho leva ao cinema político? A resposta de Glauber é que o caminho do cinema do Terceiro mundo, ao contrário do de aventura, é “perigoso, divino e maravilhoso”. A materialização do que ele entende como “cinema perigoso, divino e maravilhoso” se dá com a realização de O leão de sete cabeças (1970), um godardiano filme glauberiano. Filmado no Congo-Brazzaville no mesmo momento em que Marien Ngouabi chega ao poder e instaura a primeira república comunista na África. Na sequência final de O leão, a câmara de Glauber está onde ocorre a história.

Godard (e) pergunta a Glauber: “Que caminho leva ao cinema político?”. Cena de “O Vento do Leste”

No caminho errante de Godard à época do Dziga Vertov ele faz parada na Inglaterra, na antiga Tchecoslováquia, na Itália e filmou respetivamente Sons britânicos, Pravda e Lutas na Itália. Nessa errância, a se destacar uma estada na Palestina, onde encontrou o grupo militante Feddayn e voltou com o inacabado Até a vitória. Certo, mas, da experiência londrina, Sons britânicos segue em linhas gerais os mesmos procedimentos formais e o viés político que norteiam a produção do Dziga Vertov. A se notar, de qualquer forma, alguns pontos que guardam peculiaridade na obra de Godard naqueles anos.

Filmado na Inglaterra, é todo falado em inglês, mesmo as vozes em over, duas, no caso: uma é masculina com dicção de locutor de televisão, neutra, em relação aos comentários feitos; a outra é uma voz infantil, que relembra, sem cronologia precisa, diversos eventos protagonizados pela classe trabalhadora inglesa (Em Lutas na Itália se intercalam vozes italianas e francesas). Outra peculiaridade em relação ao Godard do Dziga Vertov: trata-se de um filme menos prolixo quanto à utilização de referências teóricas ou à alusão a acontecimentos e personalidades da cena política e cultural; ao mesmo tempo, Sons britânicos dá voz, dublada, a um repórter, que lê um texto no qual destila com virulência os valores conservadores e racistas da direita inglesa; em contraponto, exibe uma juventude distante dos trabalhadores, que se apraz em fazer poesia com as palavras USA e Mao ao som dos Beatles. Por fim, destaco entre as peculiaridades que Sons britânicos é um Godard com atenção mais acentuada para questões como as do sexo e do prazer no mundo capitalista, que são contrastadas com o desprazer no mundo do trabalho, realizado de modo alienado. Isso se evidencia no plano sequência de abertura, com operários sorumbáticos na linha de produção de uma indústria automobilística.

Mal acabara de fazer Sons britânicos e Godard rumou para a Tchecoslováquia para filmar clandestinamente Pravda em 16mm. No aspecto formal, trata-se de um Godard convencional. Um documentário com duas vozes em over que se alternam, Vladimir e Rosa (referências óbvias a Lênin e Rosa Luxemburgo), e tecem comentários sobre o cotidiano de Praga, logo após a Primavera de Praga, a partir de imagens urbanas e rurais. A abordagem desse cotidiano, contudo, é polêmica. A Tchecoslováquia havia acabado de ter sufocada uma experiência de “socialismo democrático” pelos tanques soviéticos do Pacto de Varsóvia. Os locutores de Pravda são corrosivos quanto a ocupação soviética tanto quanto com as “reformas democráticas”. As imagens de um país calmo após a ocupação soviética são consideradas mentirosas, falsas, enganosas.

Por outro lado, Vera Chytilová e Milos Forman, cineastas de grande projeção internacional com a nouvelle vague tcheca, são exibidos como revisionistas, seduzidos, pois, pela ideologia burguesa se entusiasmaram com a possibilidade de um “socialismo com face humana”. Ácido com respeito à ocupação e ao otimismo com as “reformas com face humana”, é feita – e esse o aspecto notável de Pravda – a defesa da revolução cultural chinesa, levada a cabo por Mao Tse-tung a partir de 1966. Nas imagens finais do filme, a voz over: vida longa à resistência do povo tcheco ao imperialismo soviético; vida longa ao pensamento de Mao Tse-tung. Geralmente circunspecto, anos depois no livro Godard par Godard: des annes Mao aux annes 80 (2007) ele fará autocrítica.

Sobre a adesão de Godard ao maoismo, cabe uma ressalva. Apesar de fartamente acentuada por muitos que se referem ao período no qual ele filmou no Grupo Dziga Vertov, entendo que ela merece ser matizada (não para defendê-lo, mas para realçar que o assunto é mais espinhoso do que parece). Um ponto importante para quem transita nos embates ideológicos é a distinção entre o militante e o simpatizante político. Este, para a militância, é bem aceito, mas alvo de desconfiança enquanto não passar por ritos de iniciação. O Dziga Vertov, Jean-Pierre Gorin, sim, era manifestamente maoísta. Gorin vinha da militância no movimento estudantil, tinha história, havia criado os “Cadernos marxista-leninistas” quando conheceu Godard e o auxiliou nas filmagens de A chinesa. Já Godard foi – e o é até hoje com mais de 90 anos – principalmente um provocador de forte pendor anárquico. Ele encarna bem aquele que entra num jogo, diz que vai blefar e blefa (a cavilosidade do temperamento de Godard os levará à ruptura depois da realização de Carta para Jane). Gorin, obviamente, se beneficiou ao se aproximar de um cineasta já consagrado e o atrair para a causa; Godard, por seu lado, descartou Gorin e seu maoismo assim que estes não mais serviram a seus interesses.

Ou seja, afirmações contundentes para um espírito que sempre se moveu impulsionado pela controvérsia, pela ruptura com padrões e expectativas estabelecidos, podem levar, simultaneamente, a incompreensões e disparates, na tentativa de o encaixar num lugar determinado. Seria Godard misógino, antissemita…??? A insinuação de antissemitismo foi defendida pelo biografo Richard Brody, no monumental Everything Is Cinema – The Working Life of Jean-Luc Godard, de 720 páginas. Para alguém com o sentido de provocação como Godard, as perguntas em si não são absurdas – não é impossível que se veja sinais de antissemitismo em seus filmes, suas declarações, posições oscilantes… (a defesa de um grupo militante como o Feddayn, na Palestina, exibida em Aqui e acolá, obviamente enseja indagações com respeito a Israel e aos judeus); o modo como se pergunta, entretanto, pode ser revelador e perturbador para quem pergunta: Godard leu o que Voltaire escreveu sobre a intolerância…; na dúvida, basta assistir a Para sempre Mozart (1996).

Depois de Pravda, Godard fez Lutas na Itália e Vladimir e Rosa, que fecham seu ciclo de filmes com o Grupo Dziga Vertov. Junto com o fechamento desse ciclo, um acontecimento de consequências quase trágicas: um acidente de moto em junho de 1971 e ele por pouco não encontrou a morte na frente de um ônibus. Após passar meses hospitalizado, ele voltou a ativa num ritmo menos frenético. Fez, com Jane Fonda e Yves Montand, Tudo vai bem numa cadeira de rodas, reencontrou Jane em Carta para Jane, retomou Até a vitória, que se tornou Aqui e lá. A partir de então, já sem a marca Dziga Vertov, ele se afastou do cinema e, em crise, partiu para a experiência em vídeo com uma visão obscura, imprecisa e, para mim, de criatividade duvidosa.

Certo, mas Lutas na Itália e Vladimir e Rosa já revelam sinais de cansaço, de esgotamento dos procedimentos formais e do foco no embate de questões ideológicas, que mobilizam estudantes, operários, intelectuais, teses marxistas, leninistas ou maoístas, fetiches do mundo burguês, e que teve início com A gaia ciência. Para quem o acompanhou nos filmes anteriores, tanto um como outro repetem cansativamente a fórmula e deixam no ar o que possivelmente seja um traço de sua personalidade: a compulsão para filmar. Vistos isoladamente, por óbvio, pode-se recortar de Lutas na Itália ou de Vladimir e Rosa um dado aqui e outro ali que reafirmam o gênio godardiano: o uso da sátira (tão rabelaisiano) para representar o julgamento dos Oito de Chicago em Vladimir e Rosa, mostra como Godard é capaz de explorar as possibilidades de tratar um tema com recursos da linguagem cinematográfica. Mas, concebidos no corpo de obras do Dziga Vertov, Lutas na Itália e Vladimir e Rosa sinalizam que infortunadamente o tempo hospitalizado foi providencial. Tudo vai bem, numa ironia de mal gosto, dá o sentido de sua condição. Até Salve-se quem puder (1980), quando retornou ao cinema com um título novamente cheio de ironia, temos o período menos prolífico e desorientado do trajeto cinematográfico de Godard.

 

Humberto Silva é professor de história do cinema na FAAP e na Academia Internacional de Cinema e crítico de cinema. Autor de Glauber Rocha: cinema, estética e revolução (Paco Editorial, 2016) e membro da Abraccine.

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